TECNOLOGIA


Empregos criativos serão trocados por inteligência artificial?

Não são apenas os trabalhos de natureza repetitiva que estão sob ameaça.

Por muito tempo acreditou-se que a inteligência artificial acabaria com os empregos de natureza repetitiva. Em famoso estudo publicado em 2013, Carl Frey e Michael Osborne defendiam que, quanto mais repetitiva fosse a natureza do trabalho, mais suscetível ele estaria à automação. 

Listavam trabalhadores da área de serviços de manutenção, transporte e operação de máquinas como altamente prováveis de perder seus empregos nos próximos anos.

Já os trabalhadores criativos, segmento em que há operações intelectuais complexas envolvidas, como artistas, músicos, fotógrafos, escritores, desenhistas e outros, teriam probabilidade menor de automação.

Estamos vendo agora o oposto do que Osborne e Frey previram. 

São os trabalhadores criativos (e a indústria cultural) que estão em risco de sofrer uma mudança cataclísmica. 

A razão é o surgimento de modelos de inteligência artificial acessíveis ao público que são capazes de "criar" praticamente qualquer tipo de conteúdo com alguns poucos comandos de texto, gratuitamente ou por um valor significativamente baixo.

Dentre esses modelos, estão o ChatGPT, o Dall-E, o Stable Diffusion, a Hugging Faces, o AlphaCode e assim por diante. 

A capacidade desses sistemas é ao mesmo tempo impressionante e assustadora. No ChatGPT, é possível gerar qualquer tipo de texto, bem como pesquisar informações antes impossíveis de serem obtidas de forma automatizada.

Por exemplo, perguntei para o ChatGPT quais pratos culinários aparecem citados nos livros de Jorge Amado. 

Na hora ele soube identificar essas categorias e produzir uma lista coerente: feijoada, moqueca, vatapá, acarajé, bobó de camarão. 

Poderia ter pedido para o sistema escrever qualquer tipo de texto ou ensaio, e a resposta seria na maioria dos casos coerente.

O ChatGPT e modelos semelhantes podem substituir uma quantidade avassaladora de trabalho criativo humano.

 Seja na geração de textos jornalísticos, seja na produção de conteúdo para redes sociais e newsletters, seja no atendimento em call centers, e assim por diante. 

E, claro, na automação de atividades maliciosas, como criação de fake news, conteúdo inflamatório ou trapaça no mundo educacional. 

Vai ficar cada vez mais difícil para um professor detectar plágio de alunos usando ChatGPT para fazer suas tarefas em qualquer disciplina (matemática, biologia, geografia etc.).

O problema não para por aí. Os modelos de inteligência artificial são capazes de gerar qualquer conteúdo. 

Fotos, desenhos, imagens, músicas, filmes e animações de excelente qualidade. Por exemplo, um dos modelos já é capaz de gerar playlists no Spotify. 

Você digita o tipo de clima que quer ("Festa de Réveillon só com música brasileira animada"), e a playlist surge na hora.

Por um lado, isso democratiza habilidades que antes eram especializadas. Por outro, tem o potencial de destruir o valor da criatividade. 

Por que alguém contrataria um fotógrafo ou compraria imagens de um banco de imagens se posso gerar tudo de graça usando inteligência artificial, com qualidade às vezes melhor do que os conteúdos "reais"?

Isso traz também questões, inclusive regulatórias. 

O Brasil, por exemplo, está discutindo um projeto de lei para regular inteligência artificial. Ele já nasceu obsoleto.

Foi feito com base em outros conceitos e preocupações. 

É praticamente incapaz de lidar com os desafios desses novos modelos que estão entre nós. Tema para um outro artigo.

RONALDO LEMOS - advogado, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro.



FOLHA DE SÃO PAULO
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