A sabedoria
convencional nos ensina que as atividades do governo exercem importante papel
redistributivo. Mais governo significa mais impostos cobrados dos mais ricos e,
consequentemente, mais serviços que beneficiam os mais pobres. De acordo com
essa visão, cortes nos gastos do governo prejudicam os mais pobres, afinal,
indicam redução nos serviços que os beneficiam e permitem um alívio nos
impostos pagos pelos ricos.
Será correta essa
análise para o Brasil?
Estudo publicado
pelo Ministério da Fazenda, intitulado "Efeito Redistributivo da Política
Fiscal no Brasil", mostra que a "sabedoria convencional" não
explica bem o Brasil.
Grosso modo, o
efeito distributivo da política fiscal pode ser observado a partir da
comparação do impacto da taxação, de transferências e do uso de serviços ao
longo da distribuição de renda.
Comecemos pelos
efeitos da tributação. Um sistema tributário é considerado progressivo à medida
que taxa relativamente mais os mais ricos. Praticamente todos os países de
economia desenvolvida têm sistemas tributários que demandam relativamente mais
recursos dos mais ricos. O Brasil não é diferente nesse aspecto. As duas
principais classes de impostos que incidem sobre as famílias brasileiras são os
impostos sobre a renda (incluída aí a contribuição previdenciária) e os
impostos indiretos.
O imposto de renda
pessoa física (IRPF) é fortemente progressivo. Uma quase totalidade do imposto
cobrado sobre a renda pessoa física recai sobre famílias entre os 20% mais
ricos, devido à isenção de quem tem renda mensal abaixo de R$ 1.999,18. Já a
contribuição previdenciária apresenta uma leve progressividade porque muitos
dos mais pobres estão no setor informal e não contribuem, enquanto muitos dos
mais ricos contribuem apenas até o teto do salário de contribuição de R$
5.531,31.
Entretanto, os
impostos indiretos, embutidos nos preços dos produtos, incidem
proporcionalmente mais sobre os mais pobres. Esses tendem a consumir uma
parcela maior de sua renda, isto é, tendem a poupar menos.
Quando combinamos
os efeitos dos diferentes impostos, o sistema tributário brasileiro é levemente
progressivo. Portanto, a sabedoria convencional se aplica moderadamente bem
para o lado da arrecadação no Brasil. Um governo que gasta menos aliviaria o
fardo tributário das famílias ricas mais do que das pobres, mas não muito mais.
É no efeito do uso
dos serviços e das transferências que a sabedoria convencional fracassa em
explicar o Brasil.
Um dos principais
serviços que o governo provê às famílias é a educação pública. Enquanto a
escola pública de ensinos fundamental e médio beneficia as famílias mais
pobres, aproximadamente 3/4 das matrículas das instituições públicas de ensino
superior são de estudantes das famílias na metade mais rica de nossa população.
Como o ensino de nível superior é muito mais caro do que o fundamental, o gasto
com educação tende a beneficiar mais as famílias da metade de cima da pirâmide
social brasileira. Os gastos com saúde são mais pró-pobres que os gastos com
educação, mas ainda são concentrados nas partes mais ricas do país - mesmo
dentro de grandes cidades, em seus bairros mais abastados. Para que o gasto do
governo tenha um melhor impacto distributivo, é necessário gastar mais e melhor
no ensino fundamental e expandir o acesso a serviço de saúde de qualidade nas
periferias das grandes cidades e rincões distantes dos grandes centros.
Mas o problema
maior para a sabedoria convencional no Brasil são os gastos com transferências.
Alguns programas de transferências de renda, como o Bolsa Família (BF) e o
Benefício de Prestação Continuada (BPC), atingem os mais pobres e reduzem a
desigualdade de condições de vida no país. No entanto, BF e BPC têm impacto
muito menor que o maior programa de transferências de renda do governo
brasileiro: as aposentadorias e pensões por morte.
Como as
aposentadorias e pensões por morte são ligadas ao histórico de renda dos
trabalhadores, tendem a beneficiar mais as famílias mais ricas. Isso não seria
um problema, caso as contribuições dos trabalhadores fossem suficientes para
cobrir suas aposentadorias –mas isso não é verdade. Muitos se aposentam cedo e
recebem benefícios muito superiores às quantias que contribuíram ao longo de
sua vida de trabalho.
Olhando então para
tributos, provisão de serviços e transferências, o gasto do governo faz pouco
para melhorar o perfil da distribuição de renda no Brasil.
Para que tenhamos
um governo que faz mais para quem mais precisa, precisamos refocar gastos com
educação para beneficiar as crianças mais pobres, para que elas se qualifiquem
para chegar ao ensino superior; reforçar os programas de transferência como o
BF que atingem os mais pobres enquanto reduzimos os gastos com aposentadorias
que funcionam como Robin Hood às avessas; e também podemos tornar nosso sistema
tributário mais progressivo.
Enquanto não
redirecionamos o governo para fazer mais para mais precisa, a sabedoria
convencional não se aplica no Brasil: reduzir o tamanho do governo não
prejudica os mais pobres se for feito de forma inteligente. Deixemos o BF em
paz, mas cortemos privilégios como a universidade pública gratuita para quem
pode pagar e as aposentadorias generosas para servidores públicos.
coluna por quê? Jornal FSP