DESMATAMENTO


Descaso ambiental na pior seca do século transforma interior paulista em algo pior do que Mordor.

Nos últimos tempos, não houve um dia em que o céu de São Carlos (SP) não ficasse turvado pela fumaça das queimadas, segundo o jornalista Reinaldo José Lopes.

Num dos momentos mais pungentes do clássico da fantasia “O Senhor dos Anéis” (o livro, não os filmes), os hobbits que acabaram de desempenhar papel central na derrocada do demoníaco vilão Sauron voltam para casa em suposto triunfo … e descobrem que o horror que tinham derrotado chegara à sua amada terra antes deles próprios.

Árvores foram cortadas e queimadas pelo puro prazer da destruição, chaminés lançam fumaça no ar, eflúvios fétidos poluem o rio Brandevin. Para todos os efeitos, o lar deles virou uma cópia de Mordor, o reino de Sauron.

Com efeito, nos últimos tempos, não houve um dia em que o céu de São Carlos (SP) não ficasse turvado pela fumaça das queimadas de maneira irreconhecível. 

As nuvens viraram uma espécie de canja de cinzas, e o próprio ar à nossa volta às vezes parecia adquirir essa mesma consistência pastosa, com retrogosto de brasa. 

Até o Sol mudou de cor.

E olha que eu tenho lugar de fala quando o assunto é queimada. Passei a infância e adolescência vendo as cinzas da colheita de cana-de-açúcar emporcalhando os quintais do bairro onde cresci.

Nada do que eu vi nos anos 1980 e 1990, porém, é comparável ao que aconteceu neste ano, simplesmente porque a ignorância, a imprevidência e a canalhice de alguns dos meus conterrâneos fizeram com que o fogo devorasse não as plantações de cana que eram colhidas por esse método, mas algumas das poucas áreas de cerrado e mata de galeria que tinham sobrado por aqui.

Que ninguém se engane: não se trata de conversa de “ecochato”, mas de questão de sobrevivência. 

Queimadas matam, e matam os mais vulneráveis à poluição atmosférica. E ainda trazem o bônus da desgraça de atrasar o fim da seca que as tornou possíveis –já está demonstrado que as cinzas bagunçam a dinâmica da formação de nuvens. 

Ou a gente age, ou o glorioso interior paulista fica sem água para beber porque a especulação imobiliária resolveu usar o fogo para se livrar dos restinhos de cerrado.



FOLHA DE SÃO PAULO
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