A Previdência Social vai e
volta à agenda política e econômica do país, dadas as sucessivas reformas pelas
quais o sistema tem passado desde a Constituição Federal de 1988. Dentro desse
quadro, poucos têm se preocupado em enfrentar o tema da natureza jurídica das
entidades de previdência complementar ao Regime Próprio de Previdência
Social-RPPS, criadas pela Administração Direta, que são apontadas como
verdadeira solução para aplacar os notáveis déficits experimentados pelo
sistema de Previdência Social, em especial pelo RPPS.
O artigo 40, §§14, 15 e
16, da Constituição Federal, contém os dispositivos sobre a previdência
complementar do servidor público, inseridos por obra das EC nº 20/98 e 41/03.
Confiram-se:
Art. 40 (...).
§ 14 - A União, os
Estados, o Distrito Federal e os Municípios, desde que instituam regime de
previdência complementar para os seus respectivos servidores titulares de cargo
efetivo, poderão fixar, para o valor das aposentadorias e pensões a serem
concedidas pelo regime de que trata este artigo, o limite máximo estabelecido
para os benefícios do regime geral de previdência social de que trata o art.
201.
§ 15. O regime de
previdência complementar de que trata o § 14 será instituído por lei de
iniciativa do respectivo Poder Executivo, observado o disposto no art. 202 e
seus parágrafos, no que couber, por intermédio de entidades fechadas de
previdência complementar, de natureza pública, que oferecerão aos respectivos
participantes planos de benefícios somente na modalidade de contribuição
definida.
§ 16 - Somente mediante
sua prévia e expressa opção, o disposto nos §§ 14 e 15 poderá ser
aplicado ao servidor que tiver ingressado no serviço público até a data da
publicação do ato de instituição do correspondente regime de previdência complementar.
A criação da previdência
complementar dos servidores no Brasil, para contornar os conhecidos problemas
de um sistema de repartição simples – choques demográficos, inflação,
insustentabilidade fiscal – previu um sistema de capitalização, facultativo,
com contribuição definida, para aqueles com benefícios acima do teto do Regime
Geral de Previdência Complementar (RGPS).
O transcrito §14, do
artigo 40, determina que a União, os Estados e os Municípios (no caso dos
últimos, quando tiverem RPPS) poderão fixar como teto máximo de aposentadoria e pensões o valor do teto
do RGPS, desde que instituam um regime de previdência complementar.
Assim, o servidor
continuará tendo uma previdência pública, obrigatória, no regime de repartição
simples e com benefício definido, até o teto pago pelo RGPS, sendo que o
montante da remuneração que ultrapassar esse valor poderá – desde que assim
deseje o servidor – ser investido no regime de capitalização, com contribuição
definida, numa entidade fechada de previdência.
Nesse contexto, é
interessante que se discuta a natureza jurídica dessa entidade de previdência
complementar. A Constituição Federal, no artigo 40, §15, não especificou qual
seria a natureza do ente da Administração Indireta que seria o gestor da
Previdência Complementar, prevendo, somente, que deveria ter “natureza
pública”.
Conforme discorre Raul
Miguel Freitas de Oliveira[1], a expressão gerou
intenso debate doutrinário. Há quem defenda que a expressão significa somente
que a entidade será criada pelo Estado, nada referindo sobre sua roupagem
jurídica, que será a mesma de qualquer entidade de previdência complementar.
Para outros, em sentido diametralmente oposto, significa que a entidade deverá
ter personalidade jurídica de direito público, seja sob a forma de fundação
pública, seja sob a forma de autarquia. Dentre os dois extremos, há quem diga
que “natureza pública” significa somente a submissão da entidade à parcela
derrogatória de regime jurídico pelo Direito Público que é imposta a qualquer
entidade da Administração Indireta, mesmo quando tem personalidade de direito
privado. São derrogações típicas do regime jurídico de direito público:
realizar licitações para aquisição de bens e produtos na atividade-meio;
necessidade de realização de concurso público para contratação de pessoal;
observância dos princípios da Administração, dentre eles da moralidade e da
publicidade; controle pelo Tribunal
de Contas. Ademais, a natureza pública decorreria da própria razão de ser
da entidade, pois tem o Estado como patrocinador e destina-se a gerir a
previdência complementar de servidores públicos, titulares de cargo efetivo.
Sobre o tema das fundações
criadas pelo Estado é antiga a polêmica doutrinária sobre sua personalidade
jurídica. Prevalece o entendimento de que “cabe ao legislador, quando autoriza
a criação de uma fundação, definir qual regime jurídico mais se adequa aos fins
a serem buscados pela fundação, (...)[2]”. Nessa esteira, o Estado
tanto pode criar uma fundação de direito privado – mantidas as derrogações
acima especificadas – como também pode criar uma fundação de direito público,
hipótese em que se equipara à autarquia (autarquia fundacional).
A lei nº 12618/2012, que
criou a entidade de previdência complementar no âmbito da União, prevê, em seu
artigo 4º, §1º, que a Funpresp-Exe, a Funpresp-Leg e a Funpresp-Jud serão
estruturadas na forma de fundação, de natureza pública, com personalidade
jurídica de direito privado, e que gozarão de autonomia administrativa,
financeira e gerencial:
Art. 4o É a União autorizada
a criar, observado o disposto no art. 26 e no art. 31, as seguintes entidades
fechadas de previdência complementar, com a finalidade de administrar e
executar planos de benefícios de caráter previdenciário nos termos das
Leis Complementares nos 108 e 109,
de 29 de maio de 2001:
I - a Fundação de
Previdência Complementar do Servidor Público Federal do Poder Executivo
(Funpresp-Exe), para os servidores públicos titulares de cargo efetivo do Poder
Executivo, por meio de ato do Presidente da República;
II - a Fundação de
Previdência Complementar do Servidor Público Federal do Poder Legislativo
(Funpresp-Leg), para os servidores públicos titulares de cargo efetivo do Poder
Legislativo e do Tribunal de Contas da União e para os membros deste Tribunal,
por meio de ato conjunto dos Presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado
Federal; e
III - a Fundação de Previdência
Complementar do Servidor Público Federal do Poder Judiciário (Funpresp-Jud),
para os servidores públicos titulares de cargo efetivo e para os membros do
Poder Judiciário, por meio de ato do Presidente do Supremo Tribunal Federal.
§ 1o A Funpresp-Exe, a
Funpresp-Leg e a Funpresp-Jud serão estruturadas na forma de fundação, de
natureza pública, com personalidade jurídica de direito privado, gozarão de
autonomia administrativa, financeira e gerencial e terão sede e foro no
Distrito Federal.
§ 2o Por ato conjunto das
autoridades competentes para a criação das fundações previstas nos incisos I a
III, poderá ser criada fundação que contemple os servidores públicos de 2
(dois) ou dos 3 (três) Poderes.
§ 3o Consideram-se membros
do Tribunal de Contas da União, para os efeitos desta Lei, os Ministros, os
Auditores de que trata o §
4º do art. 73 da Constituição Federal e os Subprocuradores-Gerais e Procuradores
do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União.
Note-se que a lei acabou
por adotar essa última linha interpretativa ao especificar que o ente em
questão seria uma fundação, de natureza pública e personalidade de direito
privado. O regime jurídico dos seus empregados será celetista, conforme artigo
7º. Não obstante a personalidade jurídica de direito privado, a entidade tem o
regime jurídico parcialmente derrogado pelo Direito Público, tendo sido tais
derrogações prescritas no artigo 8º da lei federal:
Art. 8o Além da
sujeição às normas de direito público que decorram de sua instituição pela
União como fundação de direito privado, integrante da sua administração
indireta, a natureza pública das entidades fechadas a que se refere o §
15 do art. 40 da Constituição Federal consistirá na:
I - submissão à legislação
federal sobre licitação e contratos administrativos;
II - realização de
concurso público para a contratação de pessoal, no caso de empregos
permanentes, ou de processo seletivo, em se tratando
de contrato temporário, conforme a Lei
no 8.745, de 9 de dezembro de 1993;
III - publicação anual, na
imprensa oficial ou em sítio oficial da administração pública certificado
digitalmente por autoridade para esse fim credenciada no âmbito da
Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP Brasil), de seus
demonstrativos contábeis, atuariais, financeiros e de benefícios, sem prejuízo
do fornecimento de informações aos participantes e assistidos dos planos de
benefícios e ao órgão fiscalizador das entidades fechadas de previdência
complementar, na forma das Leis
Complementares nºs 108 e 109,
de 29 de maio de 2001.
Assim, as contratações de
bens e serviços precisam de licitação, as contratações de pessoal dependem de
concurso público, há obrigação de publicação dos demonstrativos contábeis,
financeiros e atuariais, bem como submissão ao controle dos órgãos
fiscalizadores da Previdência Complementar e também do Tribunal de Contas da
União. Sobre o tema da licitação, por óbvio, restringem-se a atividade-meio da
entidade fundacional, como de resto é com qualquer pessoa jurídica de direito
privado criada pelo Estado, sob pena de inviabilizar as próprias atividades da
fundação.
O Estado de São Paulo
seguiu caminho parecido com a entidade de previdência complementar para o seu
RPPS, chamada de “Fundação de Previdência Complementar do Estado de São Paulo -
SP-PREVCOM”. A lei estadual atribuiu natureza jurídica de fundação à entidade.
Veja-se o artigo 4º, da lei nº 14.653/2011:
Artigo 4º - Fica o Poder
Executivo autorizado a criar entidade fechada de previdência complementar, de
natureza pública, denominada Fundação de Previdência Complementar do Estado de
São Paulo - SP-PREVCOM, com a finalidade de administrar e executar plano de
benefícios de caráter previdenciário complementar, nos termos das Leis
Complementares federais nos 108 e 109, ambas de 29 de maio de 2001, vinculada à
Secretaria da Fazenda.
Parágrafo único - A
natureza pública da SP-PREVCOM a que se refere o § 15 do artigo 40 da
Constituição Federal consistirá na:
1 - submissão à legislação
federal sobre licitação e contratos administrativos na atividade-meio;
2 - realização de concurso
público para a contratação de pessoal, exceto aqueles de provimento por livre
nomeação;
3 - criação de empregos e
fixação dos quantitativos e dos salários nos termos do artigo 47, inciso XII,
da Constituição do Estado de São Paulo;
4 - publicação anual, na
Imprensa Oficial do Estado de São Paulo - IMESP e em sítio oficial da
administração pública, dos seus demonstrativos contábeis, atuariais,
financeiros e de benefícios, sem prejuízo do fornecimento de informações aos
participantes e assistidos do plano de benefícios previdenciários complementares
e ao órgão regulador e fiscalizador das entidades fechadas de previdência
complementar, na forma das Leis Complementares federais nos 108 e 109, ambas de
29 de maio de 2001.
Note-se que,
diferentemente da lei federal, a estadual não disse com todas as letras que a
personalidade jurídica da fundação é de direito privado. O parágrafo único do
dispositivo transcrito, todavia, traz em que consiste a “natureza pública” da
SP-PREVCOM, arrolando o conjunto de derrogações típicas sofridas pelas pessoas
jurídicas de direito privado criadas pelo Estado: necessidade de licitação para
a atividade-meio; necessidade de concurso público para contratação de pessoal,
salvo aqueles em comissão; ampla publicidade de demonstrativos contábeis,
financeiros e atuarias, na forma da lei federal que rege a previdência
complementar; obediência às determinações do Governador do Estado, via decreto,
no que tange ao regime de pessoal das fundações (artigo 47, XII, CESP). Não
resta dúvida, portanto, de que a SP-PREVCOM tem personalidade de direito
privado, tal qual na esfera federal.
A opção do legislador, em ambos os casos, foi sem dúvida a mais
adequada, dada a incompatibilidade de se gerir um regime de previdência
complementar com todas as amarras próprias do regime jurídico de direito
público. A roupagem jurídica de fundação de direito privado faz com que as
entidades do RPC da União assemelhem-se às demais entidades de previdência
fechada já existentes, todas submetidas aos controles dos órgãos reguladores.
JUS