Em meio a
um ambiente de relativa calmaria política e econômica reinante em 2012, o
Congresso Nacional encontrava espaço para discutir se os esforços feitos por
garçons e cozinheiros, ao ficar de pé por horas e se expor a altas temperaturas
na cozinha, justificavam estender à categoria o direito a aposentadoria
especial, que poderia ser obtida com cinco anos a menos de contribuição em
relação aos brasileiros. Conclusão dos senadores à época: sim, mesmo implicando
em custos extras para a Previdência Social, empresas e consumidores.
Foi
preciso chegar ao cenário atual de crise para que os parlamentares fossem
obrigados a assimilar que não apenas acabou a margem para criar exceções iguais
à pleiteada pelos garçons, como será preciso rever outras cristalizadas em
décadas, para preservar a sustentabilidade da Previdência. Começa, assim, com
regras unificadas para servidores e trabalhadores do setor privado, a mais
importante reforma do governo Michel Temer. Na terça-feira 6, enquanto o
presidente do Senado, Renan Calheiros, recusava-se a cumprir uma decisão do
Supremo Tribunal Federal (STF) para afastá-lo do cargo, a equipe econômica
apresentava o texto da reforma da Previdência, aguardada há mais de uma década.
A
proposta carrega a seguinte mensagem: será preciso trabalhar mais para se
aposentar e, em geral, com benefícios menos generosos do que os atuais. O
contexto hoje é bem mais adverso do que há quatro anos. O caldo político
transbordou. O País se aproxima do terceiro ano de recessão, perdeu o selo de
bom pagador, alcançará um déficit de R$ 170 bilhões e custa a reencontrar a
rota do crescimento. Quando a ideia do garçom ainda parecia viável ao
Legislativo, o PIB avançava 1%, o superávit era de mais de R$ 100 bilhões e o
Brasil integrava o grupo dos destinos mais seguros para se investir.
A reforma
da Previdência é item essencial no cardápio de medidas para conter a explosão
da dívida pública e reduzir a desconfiança de investidores em relação à
solvência futura do Estado. Sem mudanças, os gastos se tornariam praticamente
insustentáveis. Pelas previsões oficiais, saltariam dos R$ 436 bilhões atuais
(7,4% do PIB), para quase R$ 14 trilhões em 2060, ou 17% do PIB, situando-se
num dos maiores patamares do mundo. O cálculo não inclui servidores públicos e
militares. Se considerados ambos, o percentual subiria para algo entre 22% a
25% do PIB, segundo estimativa do especialista em Previdência Paulo Tafner.
“Nenhum país do mundo gasta isso”, afirma.
Nessas
condições, seria necessário ampliar a carga tributária em 10 pontos percentuais
nos próximos 44 anos apenas para manter o déficit estável no nível atual, em
2,4% do PIB. “O aumento da carga seria um freio para o crescimento”, diz José
Roberto Savoia, professor da USP e ex-secretário de Previdência Complementar.
“A reforma equivale praticamente a uma CPMF, então podemos trabalhar com uma
expectativa de ficarmos sem aumento de imposto por algum tempo.” Com regras
mais rígidas para a maior parte dos benefícios, a reforma deve gerar uma
economia de ao menos R$ 678 bilhões até 2027. Ajudará a conter o nível das
despesas para aproximadamente 13% do PIB, segundo as estimativas de Tafner.
As novas
regras abrem caminho para o cumprimento do novo regime fiscal, que limita a
despesa pública à inflação do ano anterior pelos próximos 20 anos. A PEC do
Teto dos Gastos deve ser aprovada no Senado na terça-feira 13 e, uma vez
sancionada, contribuirá para expor a urgência na Previdência. Com as regras atuais
de benefícios, o INSS passaria a consumir mais de 60% dos gastos públicos em
dez anos e quase 90% em 2035. “A reforma da Previdência e a PEC do teto são
medidas imprescindíveis para o Brasil”, diz José Luiz Gandini, presidente da
Kia Motors do Brasil.
NOVAS
REGRAS No rol de mudanças, as mais importantes para a contenção dos
gastos são a introdução de uma idade mínima, de 65 anos, o fim de
aposentadorias especiais, como a de professores, e a proibição de acúmulo de
benefícios. O Brasil é um dos poucos países do mundo a permitir a aposentadoria
por tempo de contribuição, independente da idade. Na média, os homens que
conseguem reunir o período mínimo de recolhimento ao INSS, de 35 anos,
conquistam o benefício aos 56 anos. A modalidade representa cerca de um quarto
das aposentadorias, mas equivale a metade do custo total e, em geral, é
concentrada em contribuintes de renda mais alta.
A regra
em vigor derruba a média total das aposentadorias de homens para 59,4 anos
hoje, bem abaixo da média dos países da Organização para a Cooperação e
Desenvolvimento Econômico (OCDE), de 64,2 anos. Como se vive cada vez mais, a
discussão no mundo hoje caminha para elevar a idade mínima de 65 para 67 anos.
O Brasil é considerado um País relativamente jovem. Para cada idoso, há oito
pessoas trabalhando. O problema é que essa vantagem diminuirá ao longo do tempo
e representará uma pressão adicional à Previdência. Em 2040, a proporção
deve cair à metade: quatro trabalhadores para um idoso.
Ao mesmo
tempo, a vida está ficando mais longa. Um brasileiro com 65 anos passará a
viver, em 2060, quase três anos a mais do que hoje. Estabelecer uma idade
mínima, portanto, ajuda a reduzir desde já o tempo em que o benefício será
recebido. Haverá mudanças no cálculo da aposentadoria. A partir de agora, passa
a valer a média total das contribuições, sem a exclusão dos 20% menores, como
atualmente. O piso do salário mínimo foi mantido, mas a nova fórmula impõe às
faixas superiores um patamar inicial igual a 76% do valor integral na regra básica,
de 65 anos e contribuição de 25 anos.
Hoje, a
média das aposentadorias alcança 96% do integral e é possível chegar a 100% com
uma combinação de 65 anos e menos de 40 anos de contribuição. No novo cenário,
serão necessários, além da idade mínima, 49 anos para conseguir o valor
integral. Ou seja, um jovem teria de começar a trabalhar aos 16 anos para
alcançar esse patamar aos 65 anos. Essa regra é considerada uma das mais duras
da reforma e vem sendo o principal alvo de resistência entre sindicatos e
movimentos sociais. As centrais sindicais articulam um cronograma de
manifestações contra as novas regras.
“A regra
dos 49 anos é o pior ponto”, diz Janie Berwanger, do Instituto Brasileiro de
Direito Previdenciário (IBDP). “A impressão das pessoas é que pagarão, pagarão,
pagarão e pouco usufruirão. Qual é o sentido de contribuir com a Previdência,
então?” A rigidez é vista como uma margem de gordura para as negociações com o
Congresso. A expectativa é que parlamentares reduzam a norma dos 49 para um
máximo próximo de 40 a 45 anos. Outras regras candidatas à flexibilização são a
que proíbe o acúmulo de benefícios e o cálculo das pensões, que caiu para 60%
do benefício nos casos em que há apenas um dependente.
“Do jeito
que está, a reforma não passa”, afirmou o deputado Paulinho da Força (SD-SP),
da Força Sindical, e aliado ao governo Temer. Não se descarta ainda ofensivas
para distinguir mulheres e homens, em vez de ter uma idade única para ambas,
além de tentativas para diminuir a idade mínima. “Estão colocando alguns
jabutis na proposta para o Congresso ter o protagonismo e retirar alguns
deles”, afirmou à DINHEIRO o ministro das Telecomunicações, Ciência e
Tecnologia, Gilberto Kassab.
Em nota,
divulgada na manhã da sexta-feira 9, o Palácio do Planalto foi taxativo: “é
incorreta a informação de que o governo federal aceita diminuir a idade mínima
de 65 para requerer a aposentadoria na proposta da reforma da previdência. Esse
ponto é central para que se encontre um equilíbrio futuro nos gastos com
aposentadorias”. Consultorias e bancos preevem a aprovação até o final do ano
que vem, com maior ou menor grau de resistência. Historicamente, parlamentares
tendem a rejeitar as mudanças na Previdência porque temem ficar associados a um
tema impopular, inviabilizando reeleições futuras.
“Não tem
saída”, afirma Humberto Barbato, presidente da Associação Brasileira da
Indústria Elétrica Eletrônica (Abinee). “Há espaço para negociar e melhorar a
proposta, mas a aprovação da reforma da Previdência é fundamental.” A aposta
para atenuar a aversão é comunicar bem a necessidade das mudanças e a ideia de
que todos terão de contribuir com o esforço, mas uma decisão arranhou essa
estratégia logo de início. O governo excluiu do anúncio os militares (leia mais
no texto "Por que a caserna ficou de fora?" ao final da reportagem),
deixando a impressão de que eles não serão afetados, e ainda voltou atrás na
inclusão de policiais e bombeiros nos Estados, para desespero dos governadores
em dificuldade financeira.
O
secretário da Previdência, Marcelo Caetano, admitiu que o recuo se deu por
razões políticas. A promessa é de que ambos serão tratados separadamente num
projeto adiante. “Deveriam ter dialogado com os militares”, afirma o senador
Garibaldi Alves (PMDB – RN), que foi ministro da Previdência no governo Dilma
Rousseff. “Quanto maior a resistência [à reforma], maior a possibilidade de não
haver exclusão.” (leia entrevista no link ao final da reportagem). A exceção
feriu o ponto mais elogiado pela maior parte dos especialistas no tema: a
amplitude e profundidade da reforma.
Contrariando
os sindicatos, a proposta prevê uma regra de transição para homens com mais de
50 anos e mulheres com mais de 45 anos, que deverão pagar um pedágio extra de
contribuição. Analistas do Santander estimam que essa a medida deve alcançar
25% dos contribuintes na data de aprovação do texto, o que ajudaria a reduzir
em dez anos os efeitos fiscais da medida caso a regra valesse apenas para os
novos contribuintes.
O texto inclui ainda regras para políticos, iguala
idade de homens e mulheres, unifica os termos de servidores federais e
estaduais com o regime geral, restringe pensões, tenta instituir um
financiamento alternativo para a previdência rural, cria um gatilho para
aumentar a idade mínima conforme se amplia a expectativa de vida e acaba com
privilégios históricos. “Por todo o mundo, há uma regra geral e algumas
exceções”, afirma Tafner. “No Brasil, há um monte de exceções e uma regra geral
que pega poucos casos.” Como exemplo, ele cita os servidores públicos. “A PEC
reduz a bocada dos funcionários públicos.” Para que tenha êxito, a reforma não
pode deixar outras bocas de fora e deve contar com respaldo do Congresso para
colocar o interesse público à frente das intenções políticas. Será que vai?
IstoÉ