Retrato do poeta português Luís de Camões, feito por Fernão
Gomes por volta de 1577
Outro dia recebi de um conhecido uma mensagem que primeiro me
fez sorrir, mas logo me deixou triste. O sujeito dizia que, refletindo sobre um
conjunto de dados, tinha chegado a determinada conclusão.
Dados e conclusão não vêm ao caso. O que merece atenção aqui é a
cunha que o meu conhecido achou importante meter no texto, entre parênteses:
"Analisando (desculpe o gerundismo!) as informações disponíveis, concluo
que...".
Pensando por alguns segundos, concluí que precisava pensar por
mais alguns segundos. Foi aí que a graça inicial daquilo (como assim, chamar um
gerúndio perfeitamente funcional de "gerundismo", com exclamação e
tudo?) deu lugar a uma certa tristeza.
O cara não está entendendo bem o que se passa, e tem numerosa
companhia. Muita gente no Brasil ouviu cantar o galo gerundista do
telemarketing e concluiu que toda forma verbal terminada em "-ndo" é
um ruído, um arroto, uma gafe.
Trata-se de uma bobagem atroz. O gerúndio é bacana. Versátil,
vem sendo usado desde o nascimento da língua portuguesa para expressar ideias
de continuidade ou frequência e criar outras modulações de tempo, modo e causa.
Embora também possam ser encontradas assumindo outras formas no
vasto mundo da língua, essas ideias muitas vezes têm no gerúndio sua expressão
mais elegante e concisa.
"Senhor, esteja aguardando na linha que vamos estar
informando quando o senhor vai estar recebendo o produto" é uma frase ridícula,
óbvio. No entanto, partir daí para condenar todos os gerúndios equivale a
responsabilizar a bola pelo 7 a 1.
O que se chama de gerundismo é o vício canhestro de tratar como
frequentativas –isto é, habituais, que se repetem– todas as ações do mundo.
Mesmo a construção que esse modismo terminou avacalhando tem o seu lugar:
"Nos próximos meses não vou viajar, estarei estudando para o Enem".
Sendo o Brasil um país pouco letrado, com índices de leitura
capazes de precipitar monges taoístas em abismos de angústia e revolta, não
surpreende que tantas vezes o pessoal acabe se confundindo com a fronteira
entre o abuso e o uso razoável de determinado recurso.
Quando sabemos que sabemos pouco, é natural que nossa
insegurança transforme a liberdade de escolha, valor fundamental da ética e da
estética, em campo minado. Daí o velho apego brasileiro à hipercorreção e a
regras autoritárias em letras garrafais: isso está CERTO, aquilo está ERRADO,
fim de papo.
Juntando-se a esse quadro um dos mais clássicos mal-entendidos
da lusofonia, a trama se adensa. "Ah, os portugueses não usam o
gerúndio" é uma ideia falsa. Essa forma nominal do verbo tem emprego firme
em certas regiões de Portugal.
Ainda que fosse verdadeira, supor que a "brasilidade"
rebaixaria de alguma forma o gerúndio é pura vira-latice. "A dizer"
não tem nada de intrinsecamente superior a "dizendo". Na verdade,
poderia até ser visto como um uso bárbaro por um conservador radical que
tomasse o português camoniano como padrão-ouro do idioma.
Com seus "reis que foram dilatando a fé, o Império, e as
terras viciosas de África e de Ásia andaram devastando", tirem o gerúndio
de Camões e verão "Os Lusíadas" se desfazendo em milhares de
caquinhos.
Sérgio Rodrigues - jornalista e escritor,
publicou "Viva a língua brasileira!" (Cia. das Letras), em 2016.
Fonte: coluna jornal FSP