Por que empresas estão se recusando a contratar fumantes


Normas intrusivas de 'wellness' e regras para o comportamento das pessoas fora do escritório estão se generalizando.

Quase uma década depois de ter parado de fumar, Mabel Battle ainda tem o último maço de cigarros que comprou. Ela o guarda como lembrete de todos os momentos cinzentos que ela passou tremendo de frio do lado de fora de seu escritório, no Ohio, para desfrutar de sua dose de nicotina em companhia dos outros fumantes.

O maço, ainda envolto no celofane original, é uma prova de sua força de vontade, diz Battle. Depois de numerosas tentativas frustradas, ela enfim conseguiu parar de fumar.

Mas o sucesso dela em abandonar o cigarro também representa o resultado notável de um experimento empresarial contencioso. O que finalmente a levou à decisão foi o medo de que seu vício pudesse lhe custar o emprego. “Eu queria manter o emprego mais do que queria fumar cigarros”, diz Battle.

A Cleveland Clinic, onde ela trabalha como coordenadora de uma unidade de saúde, é um dos líderes nas iniciativas empresariais de combate ao fumo. A empresa proibiu o fumo nos 68 hectares de seu complexo em 2008, e em seguida adotou uma nova regra que previa testes químicos de todos os candidatos a emprego; aqueles que mostrassem traços de nicotina nos exames não seriam contratados.

Trabalhadores como Battle, que já eram parte dos quadros da empresa antes da proibição, não seriam demitidos por fumar em seu tempo livre, mas ela percebeu a mudança de cultura que estava em curso.

 

“Trabalhar no ramo da saúde envolve dar o exemplo”, disse o médico Bruce Rogen, diretor de medicina do plano de saúde dos funcionários da Cleveland Clinic. Desde que a clínica adotou a proibição, e que começou a oferecer programas gratuitos para que seus empregados a deixassem o fumo, diz Rogen, centenas de pessoas pararam de fumar.

Apenas 21 estados americanos (entre os quais o Ohio, onde fica a clínica) permitem que empresas excluam fumantes de suas forças de trabalho. E nesses lugares, regras semelhantes à adotada pela Cleveland Clinic se tornaram a norma no setor de saúde, segundo Rogen. Agora, a prática está se espalhando, e companhias de outros setores estão implementando regras semelhantes.

Isso delicia os ativistas que combatem o fumo. No entanto, levou defensores dos direitos civis a lançar alertas sobre o controle cada vez maior que os empregadores exercem sobre as vidas dos trabalhadores, mesmo fora do expediente.

A U-Haul, uma companhia de mudanças sediada no Arizona que tem 30 mil trabalhadores, este mês se tornou um dos maiores empregadores dos Estados Unidos a suspender a contratação de usuários de nicotina —um termo que inclui não apenas os fumantes mas os usuários de “produtos de nicotina”.

O termo pode abarcar pessoas cujos exames revelem presença de nicotina porque elas estão tentando deixar de fumar por meio de cigarros eletrônicos (“vaping”), adesivos ou goma de mascar que contém nicotina.

Como a Cleveland Clinic, a U-Haul permitirá que pessoas contratadas antes da restrição conservem seus empregos. E as restrições de contratação só se aplicarão aos 21 estados em que isso é legal nos Estados Unidos.

No entanto, caso uma companhia americana decida demitir trabalhadores que usam nicotina, os empregados não teriam muito recurso, a depender do local. Fumantes não uma “classe protegida”, salvaguardada por leis federais, como as minorias raciais ou os portadores de deficiências.

Isso significa que, nos estados em que a lei permite demissões sem justificativa, um empregador arbitrário pode demitir um trabalhador por praticamente qualquer motivo, quer seja por fumar fora do expediente, quer por motivos ainda mais arbitrários, como usar uma camisa da cor errada no escritório.

“Até que ponto vão os direitos dos empregadores [a demitir alguém]? Não há praticamente limite algum, a menos que o estado proíba”, diz Cathleen Scott, advogada trabalhista radicada na Flórida. “A escolha que o trabalhador tem é ficar ou sair —é assim que as coisas funcionam em um ambiente de trabalho que permite demissões injustificadas”.

Os estados que não permitem que empresas excluam usuários de nicotina muitas vezes têm leis que proíbem discriminação contra “comportamentos legais fora do expediente”, diz Karen Buesing, especialista em leis do trabalho no escritório de advocacia Akerman.

Mas a extensão das proteções oferecidas por essas leis pode variar, e no momento há muito debate sobre casos de trabalhadores demitidos por terem usado maconha prescrita legalmente por motivos médicos.

O número de casos trabalhistas sobre uso de nicotina fora do expediente que chegaram aos tribunais é baixo, mas os advogados trabalhistas acreditam que pode haver maneiras de tornar essas exclusões ilegais. “Proibir o fumo [fora do expediente] não é algo que tenha sido alvo de processos em número suficiente para que o público saiba se [as decisões] são aplicáveis”, diz Daniel Gwyn, advogado trabalhista em Michigan. “Parece-me interessante que a pessoa pode ser severamente obesa, o que é uma questão de estilo de vida, e receber proteção [sob a lei trabalhista americana]... mas não há proteção para os fumantes”.

Quanto à U-Haul, a companhia disse que suas novas normas de combate à nicotina são parte de seu compromisso para com a “wellness” de seus trabalhadores, mas que também existem motivos financeiros claros em ação.

Nos Estados Unidos, onde os empregadores costumam responder pelos planos de saúde de seus trabalhadores, as companhias pagam mais por sua cobertura de saúde se sua força de trabalho incluir muitos fumantes, diz Buesing.

Cerca de um quarto das empresas com mais de 500 empregados oferecem descontos nas mensalidades de planos de saúde aos trabalhadores não fumantes, diz Steven Noeldner, sócio da consultoria Mercer.

Mas as restrições ao fumo fora do expediente são apenas um dos tipos de programas de “wellness” invasivos propostos por empregadores. “Competições de fitness” estão se tornando cada vez mais frequentes; nelas, os empregados usam contadores de passos ou outros aparatos de controle para provar o quanto são ativos, em troca de descontos nas mensalidades de seus planos de saúde.

Esses programas são perfeitamente legais, desde que tenham sido estruturados corretamente, mas empresas podem enfrentar problemas caso usem os aparelhos para rastrear mais que o número de passos de seu pessoal.

A maior parte das companhias recorre a fornecedores externos para agregar os dados recolhidos nas iniciativas de “wellness”, e para garantir que sejam anônimos, em um esforço para evitar problemas. Mas muitas empresas estão implementando programas ainda mais intrusivos —por exemplo rastrear a localização de trabalhadores por meio de celulares fornecidos pelo empregador.

“A tecnologia está criando novas maneiras de rastrear e monitorar empregados”, disse Brian Kropp, diretor de pesquisa de recursos humanos na consultoria de tecnologia empresarial Gartner. As empresas muitas vezes recolhem o histórico de uso de internet dos empregados e monitoram o que eles escrevem e dizem usando equipamentos da companhia, ele afirma.

Outros empregadores vão ainda mais longe e ligam as webcams dos computadores de seu pessoal, e usam software de reconhecimento facial a fim de avaliar os sentimentos dos trabalhadores sobre o emprego. “O relacionamento entre empregados e empregadores está mudando”, ele diz. As companhias e seu pessoal “eram praticamente desconhecidos” uns dos outros quando o dia de trabalho se encerrava, mas essa já não é a maneira pela qual as coisas funcionam.

Como no caso das restrições ao fumo fora do expediente, os advogados dizem que a paisagem jurídica da vigilância eletrônica continua a evoluir. Queixas sobre esse tipo de questão são muitas vezes decididas extrajudicialmente —como no caso do processo aberto em 2015 por Myrna Arias, uma vendedora demitida por, em seus horários de folga, desligar o GPS do celular que a seu empregador lhe forneceu.

“Uma grande dificuldade para as empresas... é que elas não calcularam integralmente ]as ramificações] éticas de suas decisões”, diz Kropp. Os dirigentes da U-Haul estão reduzindo os custos da empresa com planos de saúde, mas ao mesmo tempo revelando o que consideram como comportamento apropriados para a sociedade, ele diz.

Essas práticas tipicamente não são bem recebidas pelos defensores dos direitos dos trabalhadores. “Houve época em que os empregadores buscavam garantir que os trabalhadores fossem à igreja e não bebessem... Os operadores de minas inspecionavam as casas dos trabalhadores”, diz Dale Ewart, que comanda as operações do sindicato dos trabalhadores da saúde na Flórida. “Ninguém quer viver dessa maneira. O comportamento de uma pessoa fora do expediente não deveria influenciar sua situação de trabalho”.

Mas pesquisas da Gartner ainda assim revelam cada vez mais aquiescência à vigilância por empregadores. “Dois anos atrás, a percepção era que ‘isso é coisa do Grande Irmão’”, diz Kropp. Mas graças ao avanço da vigilância digital nas vidas das pessoas, por empresas como a Amazon e o Facebook, essa posição está mudando. “Se o trabalhador sabe que o empregador está recolhendo dados, me sabe para que os dados são usados, e se eles estiverem sendo usados para algo útil, a vigilância é aceita”.

A mesma coisa pode se aplicar às proibições ao fumo. Battle, da Cleveland Clinic, inicialmente encarava negativamente as normas da companhia sobre o fumo. “Quando eles adotaram as regras, senti [que eram discriminatórias”, ela diz. Oito anos mais tarde, sua opinião mudou. “Depois que parei, fiquei feliz por eles terem agido assim”, ela diz. “Estou feliz por o cigarro ter saído da minha vida”.

Fonte: Financial Times, tradução de Paulo Migliacci

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