Desde
junho do ano passado, cada nova forma de manifestação coletiva que parece
assombrar as ruas e aturdir a imprensa é uma demanda implícita de nova chave
explicativa para o fenômeno. As chaves costumeiras (“o que pretendem os
manifestantes”, “a que servem” etc.) não dão mostras de funcionar, porque as
manifestações parecem buscar sentido em si próprias, tal qual imagem de
espelho.
Um
bom exemplo é a “finalidade” como linha de explicação, isto é, como tentativa
de esclarecer um ato ou uma atitude qualquer pelo objetivo buscado. Em junho,
havia uma finalidade econômica na luta pela redução no preço da passagem de
ônibus em São Paulo, mas foi logo superada pelo contágio social de ações
contidas em si mesmas, embora com um escopo sugestivo de mudanças globais.
Também o posterior quebra-quebra dos black blocs escapava a qualquer
finalidade política identificável.
Agora,
há o “rolezinho”, que inquieta – pasmem – o próprio Palácio do Planalto. Apesar
das sugestões de generalização (o contágio viral da internet), é originalmente
um fenômeno paulistano, que comporta, para início de esclarecimento, a
categoria “espaço”, ainda não suficientemente abordada em sua diferença com o
Rio de Janeiro.
Por
isso, é útil atentar para distinção que fazia o pensador Félix Guattari entre
“espaço estriado” (ou “áreas territorializadas”) e “espaço liso”. No primeiro
caso, trata-se de uma área de sentido denso, pela presença de símbolos étnicos,
religiosos ou culturais de todo tipo. Já o “liso” tem a ver com “um espaço
desterritorializado, onde não há mais os mesmos tipos de circunscrições ou
delimitações por emblemas étnicos ou religiosos, por exemplo”.
“Minorias
flutuantes”
Por
mais penosa que seja e tenha sido a vida das classes pobres das favelas, o Rio
de Janeiro sempre se caracterizou por uma proximidade ambígua entre o Morro e o
Asfalto, favorecida pela topografia específica da cidade. O historiador do
samba José Ramos Tinhorão descreveu-a como uma “promiscuidade vitalizadora” –
topográfica, errática, não deliberada – que permitia um certo interculturalismo
entre membros de classes sociais diferentes: jovens de pele clara, “filhos de
família” em contato com negros e mestiços que detinham a “chave folclórica” das
festas e ritmos populares, inclusive do próprio samba.
São
essas “estrias” ou marcas de singularidade humana que transformam o espaço em
território. E apesar da atual transformação da metrópole carioca em megalópole,
algo permanece dessa velha densidade simbólica que preserva alguns traços
territoriais, a despeito das mutações provocadas pelo tráfico de drogas e pelo
recrudescimento da violência.
São
Paulo sempre teve certamente cruzamentos sociotopográficos entre suas
“colônias” de imigrantes tanto de origem estrangeira quanto interna, de outras
partes do país. Disso um resultado cultural admirável é a música de gente como
Adoniram Barbosa, Paulo Vanzolini etc. Mas hoje, gradativamente, o espaço
global da cidade é descrito pela imprensa como “liso”, sem pontos simbólicos de
intersecção perceptíveis entre as classes sociais, principalmente para
os jovens. De fato, a megalópole “sem praia” (como se tem acentuado) estende-se
homogênea e horizontalmente, sem uma síntese capaz de incluir a diversidade
cultural das zonas periféricas. Até mesmo os shoppings, que são núcleos de
apropriação indiferente de consumidores, deixam transparecer a distância entre
a periferia espacial e o centro nervoso da cidade.
O
problema está em se saber que distância é essa.
A se
julgar pelas imagens midiáticas dos figurantes do rolezinho, os chavões
explicativos do tipo “excluídos do consumo” são descartáveis. Os implicados
parecem bem incluídos nos padrões médios de consumo, com roupas e tênis de
grife, além de acesso à internet. E como a maioria dos “incluídos” de hoje, não
protestam nem reivindicam coisa alguma. Alegadamente, eles querem apenas
divertir-se.
E o
problema, então? Econômico não é, político-partidário não é, criminal não é,
mas é certamente territorial e estético ou estésico. Aqui, o aspecto
territorial diz respeito à falta de uma densidade simbólica (por exemplo, uma
tradição étnica, ainda que eventualmente desprezada pela ideologia dominante)
reconhecível.
Ao
mesmo tempo, é possível encontrar na estesia (no caso, talvez este termo
seja mais adequado do que a estética), portanto, na esfera dos gostos, dos
juízos de aparência e nas emoções, uma chave explicativa adequada. Exibir-se ou
ostentar as aparências de indivíduos inseridos no consumo torna-se imperativo
num tipo de sociabilidade “lisa”, mas vetorizada pela sincronização digital das
emoções – pela internet. A essa sincronização virtual corresponde uma
fragmentação bastante real no nível das relações de trabalho, de família e de
vizinhança.
Na
concretude do território físico, a distância social se mostra (ali não há morro
perto de asfalto). Mas graças ao “território” do consumo – onde identidades
tentam forjar-se no enlace amoroso de pessoas e objetos – e ao espaço demarcado
da rede eletrônica, os jovens são compelidos a romper os limites geográficos
dos bairros periféricos e os percalços da fragmentação social para se fazer
reconhecer na “praia” do consumo, isto é, no shopping.
Só
que isso não é feito no modo objetivo e isolado do consumidor padrão, e sim em
grupo. Findas a era e a ideologia do consumo de massa (típicas da segunda
metade do século 20), viceja agora o individualismo de massa, que favorece o
florescimento de “coletivos” ou de “galeras” sem verdadeiro espírito de grupo,
ou seja, sem estabilidade identificatória. Comunidade, se há, é apenas no plano
das emoções.
A
isto se tem chamado de “minorias flutuantes” [cf. Raquel Paiva em “Minorias
flutuantes: Novos aspectos da contra-hegemonia. Revista /Animus (UFSC), 2002,
p. 9]: coletivos que podem mostrar-se e desaparecer depois como um objeto no
mar. Trata-se afinal de diversão pelo autorreconhecimento ou pelo instantâneo
reconhecimento mútuo.
Papel
da imprensa
O
rolezinho é uma espécie de selfie grupal.
Só
que é difícil acomodar grupos no espaço exíguo do shopping, programado para
atos igualitários, mas individualizados na compra ou na contemplação de
vitrines. Uma boa questão é a de se saber qual seria a reação a grupos
compactos de jovens de pele clara ou brancos brasileiros. É certo, porém, que o
colorido e iluminado igualitarismo daquele espaço é infenso à gradação forte
dos fenótipos, isto é, aos coletivos “escuros”. Em si mesma, a arquitetura do
shopping (recorde-se Le Corbusier: “É preciso matar a rua!”) embute
preconceitos. É uma arquitetura de bunker, em que se faz inerente a repulsa à diversidade.
O
espírito que preside a tudo isso é global, porque sem educação de qualidade que
garanta a entrada de todos na ordem da produção, cabe ao “resto” histórico a
inserção social pelo consumo. É o único caminho aberto pela ideologia
neoliberal às massas, que anseiam pela confirmação coletiva de sua condição
consumidora. O consumo é um território novo, onde o factício é fato social, e o
virtual aspira à realidade.
Isto
é geral, vale repetir, mas em alguns dos fenômenos ancorados no artificialismo
desse território, há particularidades locais, como o rolezinho, que é
originariamente paulistano. É preciso frisar o “originário”, uma vez que, em
tempos de internet, o local pode tornar-se rapidamente global pelo contágio
viral das redes sociais. A mídia corporativa também contribui para isso na
medida em que exagera o microevento, fazendo-o repercutir como grande notícia e
ampliando, com um pano de fundo paranoide, as suas dimensões. Em outras
palavras, a mídia tradicional também “sugere” a ubiquidade do evento.
Mas
pode acontecer que, na mudança de local, reste do fenômeno apenas o nome. No
Rio, trata-se de “apoio”. Segundo a imprensa, o rolezinho que levou ao fechamento
do Shopping Leblon no dia 19 de janeiro, um domingo, e causou a queda de 60% do
comércio no feriadão tinha como objetivo apoiar a “galera” de movimento
semelhante em São Paulo. Era gente com curso superior completo (63%) e
residente, em sua maior parte, na Zona Sul do Rio. Em suma, era gente do “filé”
existencial, que estava ali para “protestar”, como foi declarado numa pesquisa.
Desde
junho passado, como se sabe, protestar é um verbo que dispensa preposição e
objeto. Pode-se protestar contra tudo, até mesmo contra a chuva que inunda e
arrasa casas em bairros pobres. À primeira vista, seria insensato protestar e
queimar veículos por algo que depende em termos imediatos da natureza ou, em
termos mediatos, da imprevidência do Estado. Mas já faz parte da percepção
pública a evidência de que a insubordinação das ruas causa um tipo de medo que
atrai a mídia e, em consequência, a atenção dos poderes constituídos.
O
medo é, assim, um grande vetor de ações. No shopping ou na rua, gente
aglomerada e com “cara de povo” (a estesia ostentatória do consumo não apaga a
diferença étnica) acaba provocando medo. É este o sentimento patético que
transparece em comentários de jornais ou em colunistas de revistas,
supostamente avançados e cultos. As ditas altas autoridades do país não ficam
atrás: de olho na Copa, há quem pense em demarcar zonas de protesto (o
Ministério da Defesa afirma que não é sua esta ideia) como se demarcam zonas de
festa – fan protest, assim como fan fest. O fato, entretanto, é
que comerciantes paulistanos e representantes do rolezinho já se reuniram para
negociar a institucionalização do evento. Na certa, aviso prévio, menos gente,
menos tempo, menor espaço.
Se
existe sambódromo, por que não um protestódromo?
O que
fica mesmo evidente é que, nesta nova ordem social em que as emoções são
globalmente sincronizadas pela internet, o pânico pode ser manejado também
pelas massas como uma espécie de trunfo na manga contra a indiferença do poder
de Estado às condições reais de vida. Por sua vez, entretanto, o mesmo
Estado administra vários tipos de medo – a depredação das garantias
trabalhistas, as ameaças veladas ao regime das aposentadorias, a insegurança
das ruas etc.
Uma
imprensa capaz de ponderar e de orientar seria um antídoto razoável para a
síndrome de confusão dos juízos avaliativos das mudanças e tensões que vêm
aturdindo os grandes espaços urbanos. Para tanto, imprensa teria de ser algo
muito diferente de shopping, quer dizer, algo além da mera oferta de objetos,
serviços e shows. Sem reflexão e ponderação públicas, outros fenômenos dessa
natureza tendem a aparecer, a irradiar-se nos espaços físicos do país e a
amedrontar incautos e eleitoráveis. Afinal, quem tem Copa tem medo.
Muniz Sodré - jornalista e escritor, professor titular
(aposentado) da Universidade Federal do Rio de Janeiro
Fonte: site Observatório da Imprensa