DNI
coleta e centraliza dados dos cidadãos, sem preocupação com privacidade
Primeiro documento digital do país vai reunir CPF,
identidade e título de eleitor –
O governo federal anunciou na semana passada o primeiro
documento de identidade digital do país, o DNI (Documento Nacional de Identificação). Ele
poderá ser carregado no celular por um app e reunirá CPF, título de eleitor e
identidade (CNH fica de fora). Além disso, o DNI estará ligado à biometria do
portador, que precisará ir ao cartório eleitoralfazer sua digital
eletrônica.
Parece boa notícia. Mas, como muitas modernidades
brasileiras recentes, traz mais preocupação que alento.
Pergunta-se, por exemplo, se o DNI irá substituir o
vergonhoso e-CPF, que é exigido pela Receita Federal para ingresso autenticado
em seus sistemas (ele facilita o preenchimento e a entrega do Imposto de
Renda). Hoje, esse e-CPF é feito por empresas que cobram R$ 180 por ano para
manter ativo esse e-Documento. Valor absurdo para a maioria dos brasileiros.
Como resultado, só 5% da população tem um documento desse tipo.
Os demais 95% estão excluídos.
Lendo a lei e o decreto do DNI, não fica claro se ele
irá aposentar o e-CPF. Se isso não ocorrer, o DNI será um documento digital
fake, aceito por uns, mas não outros. Uma identidade digital verdadeira precisa
ser universal, aceita por todos. Mais do que isso, deve permitir ao cidadão
assinar e autenticar documentos, controlar seus dados, acessar todos os
serviços governamentais de forma autenticada, criptografar informações e
mantê-las privadas, e assim por diante.
Um documento digital de verdade permitiria uma revolução
nos serviços públicos. Por exemplo, na saúde, daria acesso direto dos pacientes
ao seu prontuário médico, como fez a Inglaterra.
Outra preocupação sobre o DNI é que ele coleta e
centraliza dados de todos os cidadãos, sem se preocupar em nada com
privacidade.
Mais grave, a lei do DNI cria uma base de dados federal
chamada ICN que centralizará informações altamente sensíveis, provenientes de
Registros Civis, da Justiça Eleitoral e de outros órgãos.
O próprio uso do DNI poderá vir a ser rastreado. Toda
vez em que o portador mostrar o documento para autenticação, a ICN poderá ter o
registro de onde, quando, por quem e em que lugar isso aconteceu.
Centralizar informações e promover sua
interoperabilidade é algo positivo. DESDE (note as letras maiúsculas) que a
preocupação com privacidade seja atendida antes, tanto do ponto de
vista normativo quanto tecnológico.
Como
se sabe, o Brasil nem sequer possui uma lei de proteção de dados pessoais.
Estamos 30 anos atrasados nessa agenda (Argentina, Chile, Colômbia, Uruguai,
todos têm leis assim). Construir uma central de coleta e monitoramento de dados
como está sendo proposto sem dedicar uma linha sobre privacidade é
temerário.
Ronaldo Lemos - advogado, diretor do Instituto de Tecnologia e
Sociedade do Rio de Janeiro (ITSrio.org). Mestre em direito por Harvard.
Pesquisador e representante do MIT Media Lab no Brasil.