Regulação falha e execução ainda pior caracterizam
sistema bancário dos EUA
Ninguém
conseguiu me explicar como o Fed considerava que o pior cenário possível seria
de juros em 4,5%.
Na crise de 2008, o banco central
americano, conhecido por Fed, resgatou os bancos.
O Fed comprou os títulos de
hipotecas que as instituições financeiras detinham.
Ou seja, no ativo dos
bancos, no lugar das hipotecas, passou a haver liquidez. Os bancos nada fizeram
com essa liquidez. Faltou a política fiscal. A recuperação após a crise foi
lenta, e a inflação não veio.
Na pandemia, as coisas ocorreram de forma muito
diversa. O governo americano transferiu recursos para as famílias.
A
política fiscal deu ar de sua graça. Esses recursos viraram depósitos do setor
privado não bancário nos bancos.
Como os juros estavam muito baixos, muitos bancos
aplicaram esses recursos em títulos de dívida do Tesouro norte-americano e
títulos lastreados em hipotecas, ambos de longo prazo.
Esses papéis pagam um
juro maior do que a remuneração dos depósitos. Era assim que o banco ganhava dinheiro.
Um título de longo prazo paga, com determinada
periodicidade, um certo valor, ambos estabelecidos em contrato. No vencimento,
o emissor recompra o título por um determinado preço, também estabelecido em
contrato.
Quando o título é emitido, o preço de aquisição será dado pelo
mercado de acordo com os juros vigentes naquele momento: o investidor pode
comprar o título ou deixar o dinheiro rendendo no mercado.
O preço pago será
aquele que equilibra as duas opções (controlado pelo risco das diferentes opções).
O banco que quebrou há duas semanas, o Silicon Valley Bank (SVB), tinha como
obrigações depósitos à vista. Suas aplicações estavam em títulos de longo
prazo.
Os títulos do Tesouro e os lastreados em hipotecas têm grande liquidez.
Se um depositante quiser retirar os recursos, vendem-se os títulos.
Na crise da pandemia, a inflação veio. E veio
forte. Os juros subiram.
Vale lembrar: o preço de um título de longo prazo é
aquele valor que gera no mercado, dados os juros vigentes em um momento do
tempo, um fluxo de renda equivalente aos pagamentos do título como estabelecido
pelo contrato.
Se os juros sobem, considerando que o fluxo de pagamentos do
título está dado, o preço dele cairá: os juros de mercado mais elevados farão
com que uma quantidade menor de recursos gere um fluxo de renda equivalente aos
contratuais.
A elevação dos juros nos EUA reduziu muito o valor
dos ativos do SVB. Parcela expressiva dos depósitos do SVB era superior a US$
250 mil, o limite garantido pelo seguro-depósito.
A fragilidade do banco, mesmo
tendo aplicado os recursos em papéis sem risco de calote, isto é, papéis
seguros, gerou uma corrida bancária.
Trabalho recente documentou que a exposição dos
bancos americanos a esse problema corresponde a 3% do PIB.
O governo já
assegurou os depósitos e, por esse canal, a corrida bancária deve ser
estancada.
Evidentemente, ainda estamos no meio do processo e
não é possível sabermos toda a sua extensão.
No entanto, é possível assegurar que a regulação bancária americana é muito falha.
Após a crise de 2008, o Congresso americano
aprovou, em 2010, a Lei Dodd-Frank.
Em 2018, o Congresso afrouxou alguns
limites regulatórios da lei de 2010, principalmente para os bancos cujos ativos
variavam de US$ 50 bilhões a US$ 250 bilhões, exatamente o caso do SVB.
Em particular, os bancos nessa faixa de ativo
ficaram isentos de participar anualmente do teste de estresse.
O problema é ainda pior. Em fevereiro de 2022, o
Fed conduziu um teste de estresse para os bancos com ativos acima de US$ 250
bilhões.
No entanto, o teste não apresentaria problemas no SVB se ele
participasse: no pior cenário, o Fed considerou que os juros não superariam
4,5% ao ano.
Aqui não consigo avançar. Ninguém conseguiu me
explicar como o Fed, em fevereiro de 2022, considerava que o pior cenário
possível imaginável seria de juros em 4,5%!
Muito difícil tocar um sistema bancário se a
regulação é falha e a execução é ainda pior.
SAMUEL PESSÔA – pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia
(FGV) e da Julius Baer Family Office (JBFO). É doutor em economia pela USP.