Com
veto à criação de agência, legislação é morta-viva, como um zumbi
Na semana passada, foi sancionada nossa Lei de Proteção de Dados. Trata-se da lei que
estabelece as regras do jogo sobre como dados pessoais podem ser coletados,
processados e transferidos no país.
O impacto da lei é abrangente. Afeta não só empresas de tecnologia mas qualquer
outra entidade ou organização que trabalhe com dados. Com a sanção, o Brasil
torna-se o 127º país a ter uma legislação do tipo.
A inspiração para a lei brasileira veio diretamente do chamado
GDPR, o modelo europeu de proteção de dados. A Europa, diga-se, vem se tornando
uma espécie de “superpotência regulatória”. Um dos principais produtos de
exportação do continente são modelos legais. Boa parte das leis globais de
proteção de dados nos diversos países segue de algum modo o caminho europeu.
No entanto, a lei brasileira nasceu desgovernada. Diferentemente do modelo
europeu, foi vetado o dispositivo da nossa legislação que criaria uma autoridade
nacional de proteção de dados. Trata-se da entidade administrativa que seria
responsável por implementar, fiscalizar e deliberar sobre a aplicação da nova
lei.
Essa agência está presente em todos os países europeus, bem como nos países que
seguiram o mesmo modelo (incluindo Argentina, Uruguai e outros vizinhos
latino-americanos).
Lei de proteção de dados brasileira foi sancionada, mas
com vetos -
Um dos papéis da agência é interpretar a lei, definindo
seus parâmetros de aplicação e resolvendo suas muitas dúvidas e incertezas. Em
outras palavras, leis de privacidade são desenhadas para funcionar
necessariamente com uma autoridade, que funciona como o “centro de controle”
essencial da lei. Tanto é que o texto que foi aprovado menciona 49 vezes a
palavra “autoridade nacional”. Só que, por causa do veto, ela não existe. O que
acontecerá com esse texto fantasma? Ninguém sabe.
O resultado é a aprovação de uma lei que cria pesadas obrigações jurídicas, mas
é acéfala. Em outras palavras, é uma lei morta-viva. Tal como um zumbi de
seriado de televisão, suas normas serão colocadas em movimento. Mas esse
movimento será errático e imprevisível. Em vez de haver uma autoridade que
uniformiza sua aplicação, a lei será interpretada de forma atomizada por cada
um dos mais de 17 mil juízes de primeira instância do país.
Serão necessários três a quatro anos de vigência para que as decisões comecem a
chegar aos tribunais superiores, quando só então começarão a se uniformizar.
Até lá, valerá a incerteza.
Conceitos fundamentais da lei, como o chamado “legítimo interesse”,
permanecerão indeterminados. O maior risco, no entanto, é a lei brasileira não
ser reconhecida como compatível com a lei europeia justamente por falta da autoridade.
Esse seria o pior dos mundos. Teríamos todos os ônus de uma lei geral, sem o
benefício de promover o livre fluxo internacional de dados para outros países
com níveis de proteção compatíveis com a legislação europeia.
A informação do governo é que a autoridade será recriada por meio de medida
provisória ou projeto de lei do Executivo. A ideia seria agir rapidamente,
justamente para não deixar a lei desgovernada por muito tempo. Tendo em vista o
início do período eleitoral e o contexto político nos próximos meses, é difícil
acreditar que isso irá acontecer.
Ronaldo
Lemos - advogado, diretor do Instituto
de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro.
Fonte:
coluna jornal FSP