Tempo de sentir
Para escrever e,
também, para ler, é preciso deixar de lado o celular
É
sempre interessante ouvir o que dizem os escritores sobre seu processo
criativo.
Afinal, como as ideias se transformam em um texto?
Recentemente, Itamar Vieira Junior, autor do premiado "Torto Arado" e de
outras obras literárias, disse que "o celular é o grande inimigo de
quem escreve" e acrescentou
que, "no momento da escrita, todas as distrações precisam ser
eliminadas".
O conselho, à primeira vista, pode parecer óbvio, mas, no
fundo, é provocativo. Somos capazes de deixar de lado o celular?
Não apenas a escrita depende de sossego e
concentração. Esses são requisitos também para uma boa leitura.
Como adentrar o
universo de um romance sem deixar de lado todo o resto?
Às vezes, tenho a
impressão de que muita gente lê a crítica ou o resumo do livro, mas não vive a
experiência de sorver, uma a uma, as palavras e frases que compõem o tecido
literário.
Na verdade, ouvi algo mais ou menos assim de um
editor que conversava num "podcast" com vários escritores.
Ele
afirmou, sem cerimônia, que muitos livros são comentados, que temos de saber de
que tratam e até formar opinião sobre eles, mas que não serão lidos – até
porque ninguém consegue ler tudo o que é publicado.
Acrescento, de minha parte,
que livros bem comentados são bem vendidos e se tornam ótimos presentes nas
datas festivas.
Nada disso garante, no entanto, que sejam, efetivamente, lidos.
Ainda assim, ao que parece, cumprem um papel no debate cultural. São lidos por
alguns, comprados por muitos e comentados por todos.
Não vai
aqui nenhuma crítica de fundo moral a esse fato, talvez apenas um lamento.
Entrar em um universo imaginativo sendo conduzido pela linguagem é uma
experiência muito prazerosa e muito diferente de qualquer outra.
Ler pelo
prazer, não para disputar a primazia do comentário inteligente nas redes
sociais, esquecendo o celular (e também as outras demandas) por algumas horas,
é um privilégio.
Falta tempo e falta solidão, embora estejamos sós, cada dia
mais isolados. Talvez falte o tempo de sentir.
Para escrever e, também, para ler, é preciso um
pouco de solidão. Estar só é diferente de saber-se irremediavelmente só e
desamparado. Coisas distintas.
Esse estar só, no entanto, vai deixando de
existir. Basta nos pegarmos sós que logo alcançamos e celular para saber se
alguém nos enviou mensagem ou se, ao menos, publicou alguma novidade nas redes
sociais.
Com milhares de "amigos", o que não nos falta são notícias.
Assim ficamos sabendo que um velho amigo de
infância se casou de novo (perdemos o divórcio, mas não faz mal, vamos
parabenizá-lo pelas segundas núpcias), que outro tem a mãe doente no hospital,
outro adotou um cãozinho em uma ONG, outro acabou de conseguir uma bolsa para
estudar em Paris ou Londres, outro foi contratado por uma grande empresa para
exercer um cargo importante, outro está num belo restaurante (e fotografa o
prato maravilhoso antes de comer), outro ganhou um prêmio ou reconhecimento,
outro está comemorando o aniversário ao lado de vários amigos, outro tirou foto
com um artista de TV que encontrou no aeroporto.
No meio disso tudo, uma moça bonita ensina a
usar o delineador (como parece fácil!), um sujeito engraçado mostra como limpar
o ventilador, uma mocinha empoderada garante que qualquer um pode trocar o seu
varal de teto, depois vêm os gatinhos, vídeos que já chegam com milhares de
curtidas (seremos apenas mais um a dar o "like" para as fofuras) e,
de repente tomamos conhecimento da morte do papa, de um bolo envenenado que
matou várias pessoas, de um novo remédio para emagrecer – e isso sem falar nos
anúncios, que se imiscuem até no meio das notícias.
Thaís Nicoleti – BLOG COM dicas para quem tem dúvidas no emprego da chamada
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