Apodrecimento cerebral, não; é apodrecimento da
humanidade mesmo
A ciência social
computacional quer cuidar de você; digitalmente, claro
A que ponto chegamos: agora existe uma
especialidade chamada "ciência social computacional" que usa as
pegadas digitais que cada um de nós deixa descuidadamente por aí e ambiciona
nos oferecer cuidados, como conselhos e companhia, que nós humanos damos e
recebemos cada vez menos uns dos outros porque... estamos ocupados deixando as
tais pegadas digitais em mídias sociais e similares.
Descobri recentemente a "cientista social
computacional" Sandra Matz, da Escola de Negócios da Universidade Columbia, nos EUA, cuja
aspiração profissional é o que ela chama de "melhorar a vida" de quem
deixa pegadas digitais.
Funciona assim: Matz tem acesso ao chamado "big
data", as gigantescas bases de dados sobre o que dizemos, compramos,
gostamos e recomendamos online, e também quando acordamos e pulamos direto no
Instagram ou equivalente, e quando largamos o telefone e dormimos.
Matz também
tem acesso a métodos matemáticos para cruzar todos esses dados e encontrar
padrões de comportamento.
Até aqui, não há grandes novidades.
Estudando o
comportamento de populações, Matz descobriu que a guerra na Ucrânia afetou o
bem-estar em várias nações, e que a eleição de candidatos populistas está
correlacionada com emoções negativas entre os eleitores.
Nada disso é
surpreendente ou transformador, mas é sempre bom ter dados.
O que me choca é que Matz acha maravilhoso ela
agora ter a possibilidade de usar pegadas digitais individuais para oferecer a
cada um de nós (digitalmente, claro) o apoio, aconselhamento e conforto que
deveríamos estar recebendo de outras pessoas ao nosso redor –se não
estivéssemos todos tão ocupados em deixar as tais pegadas digitais.
Em um episódio recente do
podcast Hidden Brain, ela explica por exemplo
como o rastro econômico individual deixado nas mídias sociais pode ser usado
para fazer recomendações personalizadas sobre como deixar mais dinheiro no
banco.
Soa meigo, mas claro que isso é muito mais de interesse do banco, que
lucra ao emprestar a poupança alheia a juros astronômicos, do que de quem está
contando os trocados para chegar ao fim do mês.
Mais meigo ainda é o plano de Matz de usar o padrão
individual de atividade online para detectar mudanças na rotina que sinalizam
doença, episódios depressivos, ou até mesmo a probabilidade de alguém abandonar
os estudos ou trabalho.
Uma vez detectada a mudança, um aplicativo pode
conectar a pessoa afligida a um médico, terapeuta, ou supervisor –em troca de
uma módica comissão, claro.
Ao usuário que não pode pagar a consulta, Matz cita
exemplos que sugerem que mesmo uma conversa com um bot movido a large language
models, como o ChatGPT, tem poderes terapêuticos, porque afinal o importante
não é ser ouvido, mas falar.
Cacete. Que fim levaram os amigos, a família, os
colegas de classe? As interações sociais face a face, onde a gente vê alegria e
sofrimento no rosto uns dos outros, pensa junto, vive junto?
Ouço os planos de Matz e me dou conta de que
debater os usos da inteligência artificial é abanar a fumaça
em vez de apagar o fogo, é truque ilusionista para desviar a atenção do furto.
O problema fundamental é que nós humanos já estamos perdendo nossa humanidade
há tempos, desde quando aceitamos relegar amizades e interações familiares às
mídias ditas sociais.
O que elas causam não é "brain rot",
apodrecimento cerebral: é "humanity rot", mesmo.
SUZANA
HERCULANO-HOUZEL - bióloga e neurocientista da
Universidade Vanderbilt (EUA).