Movidos pelo cérebro
Minha nova teoria
para explicar por que temos sangue quente
Nós mamíferos temos o sangue aquecido pela nossa
endotermia: funcionamos com uma temperatura interna de uns 36°C a 39°C,
produzida pelo calor do metabolismo do corpo.
Aves também são endotérmicas –e
olha que não somos parentes delas, o que quer dizer que a endotermia surgiu
duas vezes, nelas e em nós, pois no meio do caminho da nossa árvore evolutiva
tem o resto dos répteis (pois é, ave é tecnicamente réptil), que funcionam
perfeitamente bem na temperatura do seu ambiente.
Só isso já deveria bastar para acabar com a ideia
de que "endotermia é melhor", muito menos necessária.
Pelo contrário,
como eu disse aqui semana passada, endotermia é ideia
de jerico dispendiosa, como todo mundo que trocou as lâmpadas incandescentes
por LEDs é capaz de entender.
Se funciona do mesmo jeito –nasce, cresce, se
reproduz, e ainda vive muito mais tempo a temperaturas corporais mais baixas,
como as tartarugas–, o melhor deveria ser gastar menos energia, oras.
Se é
assim, então por que a endotermia existe?
Eu agora tenho uma resposta toda minha para
oferecer: porque pode.
Mais especificamente, porque um cérebro que ganha mais
oxigênio para rodar vai chupar tudinho que dá, e no processo leva o fígado e os
rins junto, que têm que limpar o lixo produzido pelo cérebro rodando a todo
vapor.
Tudo isso gera calor; de fato, o cérebro é sempre 1 a 2 graus mais
quente que o resto do corpo, e não porque esquente até uma temperatura
supostamente "ideal", e sim porque sua temperatura sobe até o limite
onde o hipotálamo literalmente põe a língua de fora e faz o cérebro perder
calor pelo corpo.
Pronto: a endotermia, de acordo com minha teoria, é o
resultado inevitável de subir de nível a quantidade de energia que o cérebro
recebe dos pulmões e coração, o que aconteceu lá na origem dos mamíferos, e
também das aves.
Essa é a versão de um minuto da estória, que passou
três anos crescendo.
Desenvolver teoria é coisa que cientista só pode fazer
quando uma universidade paga um salário pra gente identificar buracos de coelho e parar para ler e
pensar e rabiscar possibilidades, então rejeitar várias delas e pensar mais,
montar uma ideia toda na cabeça, passar tudo organizadinho e documentado pro
papel, testar brincando de advogado do diabo... e, com sorte, chegar ao pacote
completo, que algum "journal" publica para o mundo ler.
Essa parte já
vem, mas como a Folha também me paga uns dinheiros para eu
compartilhar ideias com os leitores, resolvi adiantar a novidade e tirar
partido do espírito crítico do meu eleitorado. Cartas para a Redação, por
favor.
Mas
sim: no caso desta minha teoria em particular, suas origens remontam a uma
descoberta recente que mudou minha carreira pós-Covid, quando eu e meu
colaborador Doug Rothman demonstramos três anos atrás que o cérebro funciona no
seu limite, usando praticamente todo o oxigênio que ele consegue extrair do
sangue.
Neste aspecto, o cérebro é exatamente como uma lâmpada incandescente: o
tanto de energia que ele consegue puxar do que recebe é o tanto que ele usa,
com um monte de calor gerado no processo.
O truque da lâmpada fria é justamente
que ela tem um dispositivo que reduz a voltagem da fiação de 110-220 volts para
uns míseros 2-4 volts, o que limita a quantidade de energia que o LED recebe.
Como além disso o LED é muito mais eficiente, o calor produzido é mínimo.
Já
o cérebro não tem válvula de contenção. Quem paga o preço? O resto do corpo,
claro, que fica fadado a ser menorzinho.
Mas isso é assunto pra semana que vem,
no último episódio desta série sobre por que você tem sangue quente. Até lá!
SUZANA
HERCULANO-HOUZEL - bióloga e neurocientista da
Universidade Vanderbilt (EUA)