Na final da Copa de 1970, vi pela
primeira vez adultos agindo da forma reservada às crianças
Na final da mítica Copa de 1970, eu tinha cinco anos. A
televisão em preto e branco, de 12 polegadas, transmitia o jogo rodeada pela
turba familiar. Eu nunca tinha visto, até então, adultos agindo da forma
habitualmente reservada às crianças.
Pressentia que algo importantíssimo estava ocorrendo, questão de vida e morte.
Filhos e netos de italianos, torcíamos pelo Brasil contra a Itália, como se não houvesse
amanhã. A Itália de meus avós era xingada de todos os jeitos. Macarronada e
caipirinha ilustravam os clichês de dois mundos. Ao ser informada de nossa
vitória, me pus a comemorar loucamente, pois a promessa era a de que algo
mágico aconteceria a partir de então.
Não saberia dizer o quê, mas era certo que, a partir dali, tudo mais seria
possível. Carros passavam buzinando, e fogos espocavam por todos os
cantos da cidade. Meu pai, para minha imensa surpresa, chorava de alegria. A
Itália nunca mais seria a mesma para mim, agora que eu sabia que, na hora da
guerra, éramos brasileiros e nos orgulhávamos disso. Nos orgulhávamos da seleção brasileira que tinha até negros!, para
deleite de uma torcida que se sentia igualitária, sem preconceitos. Tínhamos um
rei negro, Pelé, pois não éramos racistas, éramos o povo da miscigenação.
O Brasil era o país do futuro e até a ditadura, que corria solta torturando e
sufocando qualquer oposição, era eclipsada pela mágica do futebol.
Depois da vitória, fomos para o terraço do sobrado,
gritar histericamente para as pessoas que passavam e buzinavam. Meus irmãos
mais velhos resolveram sair com os amigos para comemorar, na Augusta, que fazia
as vezes da Paulista de hoje.
Claro que eu não estava convidada. Eu era apenas uma pirralha de cinco anos
agigantada pela epifania da vitória e pela fantasia de igualdade.
Fiquei inconsolável, não acreditava que seria deixada de lado, depois de toda
aquela comunhão entre faixas etárias, raças, classes e gêneros. A festa acabou
para mim naquela segregação.
Desde então, juro que não vou assistir e não vou torcer pela seleção na Copa do Mundo. Mas, a
cada ano, como um mau hábito, me pego torcendo irremediavelmente. Torcida
incorrigível, que nunca saberei se é exatamente pela seleção de futebol ou pela
promessa de um país igualitário e moderno.
Por essa promessa, ainda faço questão de torcer.
Vera Iaconelli
Psicanalista, fala sobre relações
entre pais e filhos, mudanças de costumes e novas famílias do século 21.