Não se deixem enganar, os fabricantes de cigarro
não querem ajudar viciados
Com os
eletrônicos, doses de nicotina maiores fazem parte do cotidiano, e ninguém sabe
o que acontecerá no futuro
Precisa ser muito ingênuo para cair nessa conversa
de que o cigarro eletrônico ajuda a largar do
fumo.
Acreditar que os fabricantes de cigarro comum criariam uma alternativa
para ajudar aqueles que lutam para se libertar dele é o mesmo que imaginar
traficantes montando clínicas de recuperação na cracolândia.
De onde vem o lucro dos fabricantes de cigarro ou
dos comerciantes de crack? Do bolso dos dependentes, claro: num caso, a
nicotina, no outro, a cocaína.
A semelhança acaba aí, porque é mais fácil largar
do crack do que do cigarro. Falo com a experiência de 35 anos atendendo
dependentes de crack nas cadeias: não há um que não considere mais
insuportáveis as crises de abstinência de nicotina.
O grupo da doutora Jacqueline Scholz, do Instituto do Coração (Incor), em
parceria com a Vigilância Sanitária do Estado de São Paulo, acabou de publicar
um estudo com mais de 400 usuários de cigarro eletrônico, arregimentados entre
frequentadores de bares, shows e eventos no estado.
A média de idade dos participantes era de 27 anos,
96% tinham escolaridade superior e 70% se consideravam brancos.
Os locais
escolhidos eram frequentados por jovens de classe média alta.
Vou resumir os achados mais importantes. Os autores
observaram que os níveis de nicotina detectados entre os usuários "podem
ser extremamente elevados".
Em 13% deles as concentrações ultrapassaram
seis vezes a dos que fumam 20 cigarros comuns todos os dias.
Nesse grupo a
concentração média de nicotina no organismo foi de 2.400 ng/mL, número que
atingiu 4.530 ng/mL.
Enquanto o fumante de cigarro comum dá em média 200
tragadas num dia, o dos eletrônicos chegou a mais de 1.500.
Dos que já tinham sido usuários de cigarros comuns,
40% tinham conseguido parar quando começaram com os eletrônicos.
Os outros 60%
simplesmente trocaram aqueles por estes.
Do total de usuários de eletrônicos, 60% nunca
haviam fumado cigarros comuns.
Ao todo, 31% relataram quadros de ansiedade e/ou
depressão. Entre os que apresentavam concentrações muito elevadas de nicotina
(acima de 400 ng/mL), a prevalência foi de 41%.
Também, 20% dos participantes sofriam de asma,
alergia ou hipertensão arterial. A prevalência de asma foi mais alta do que a
dos não fumantes.
Mais de 70% dos usuários de eletrônicos haviam
tentado parar uma vez ou mais, sem conseguir.
No estudo, 8% disseram que fumavam um tipo de
eletrônico sem nicotina. Em 55% deles havia nicotina na circulação.
E 54% dos usuários sequer sabiam que os eletrônicos
contêm nicotina.
A eloquência desses números dispensa explicações.
Não é à toa que os especialistas consideram os eletrônicos até piores do que os
convencionais.
Estamos criando uma nova geração de dependentes de nicotina,
muitos dos quais estão sendo escravizados sem saber que aquele dispositivo de
aparência inofensiva contém a droga.
Fumantes de dois ou três maços de cigarros por dia
sempre foram minoria.
Com os eletrônicos, doses de nicotina superiores a essas
fazem parte do cotidiano. Ninguém sabe o que acontecerá no decorrer dos anos.
Não existe experiência prévia na medicina com o consumo diário de doses tão
elevadas nem com a inalação dos flavorizantes e dos compostos tóxicos
resultantes da decomposição deles.
Por isso, quando vierem com aquela conversa de que
a indústria do fumo quer aprovar a comercialização dos eletrônicos, com o
pretexto de acabar com o contrabando e controlar a qualidade, não se deixe
enganar.
Controle de qualidade? Inventem outra, essa gente é mentirosa, são
vendedores de uma droga que provoca dependência química.
Se não se tratasse de
um produto legalizado seriam chamados de traficantes.
O que pretendem é usar a
rede de distribuição que chega em qualquer botequim do país.
Minha geração não teve acesso aos estudos que
mostravam as doenças mortais causadas pelo cigarro.
Influenciados pela
publicidade criminosa que controlava os meios de comunicação de massa,
começávamos a fumar sem saber que cairíamos na mão do fornecedor, na maioria
das vezes para sempre. Milhões perderam a vida.
Muito triste ver que quase cem anos mais tarde, uma
geração de jovens com todo o acesso à informação cai na mesma armadilha.
O trabalho educativo que tornou o Brasil um dos
países com as menores prevalências mundiais de fumantes, terá que ser repetido
à exaustão. Se conseguimos uma vez, saberemos fazer de novo.
DRAUZIO
VARELLA
- médico cancerologista, autor de “Estação
Carandiru”.