A combinação de álcool e
isolamento foi um fim, ou quase, para muitos
Quem imaginaria que o álcool em gel, essencial na pandemia, seria fatal
para muitos alcoólatras.
A luz forte, a mesma sensação de fracasso e
tristeza. O vulto de uma pessoa cochichando. Perguntei quem era, onde eu
estava.
Um bom tempo se passou (pelo menos na minha cabeça) e a mulher –agora
eu conseguia ver com clareza o seu rosto, seus cabelos cacheados e o aparelho
verde-limão nos dentes–, me disse, ríspida: "Hospital, saindo da UTI, menina.
Não-lembra-de-nada-do-que-se-passou?"
Não, eu não lembrava. Aquela
sensação de tristeza foi aos poucos sendo entremeada de pequenas visões (todas
misturadas) de um dia muito triste.
O dia que eu decidi que nada mais importava
e que a minha vida era simplesmente um peso para todo mundo que me rodeava. Foi
aí que eu decidi beber todo álcool que encontrasse pela frente e também todos
os remédios, para ajudar a anestesiar.
Comecei a chorar e a mesma moça veio até
mim: "Está chorando por quê? Sabia que você está ocupando um leito de quem
realmente precisa?".
Eu então me senti pior ainda e quase saí arrancando
tudo que estava nas minhas veias para apagar de vez.
Isso aconteceu em meados de 2011
e hoje, em 2023, me lembro de tudo com uma raiva gigantesca. Veio-me à memória
porque acabamos de passar por uma pandemia em que os leitos dos hospitais
ficaram completamente tomados por pessoas adoecidas pela Covid-19 e o sistema de saúde colapsou.
Se tivéssemos coisas a fazer na rua, ok. Se tivéssemos trabalhos essenciais,
ok. Senão, que ficássemos em casa. Eu, alcoólatra, me assustei desde o primeiro
instante.
O isolamento é uma das piores
situações para a doença do alcoolismo. Reconhecida pela
Organização Mundial de Saúde (OMS), com milhares de portadores em todo canto do
planeta, ainda assim não é considerada doença pela sociedade —pelo menos não no
Brasil.
O que vivi no hospital aquele dia ilustra bem essa percepção. A moça que
me falou aquilo era uma médica de plantão. Profissionais cuidam de doentes.
Doentes alcoólatras não são doentes?
Agora imaginem a situação dessas pessoas
em um momento em que TODAS as doenças foram escanteadas para um segundo
momento.
A Covid-19 trouxe uma avalanche
de outros problemas que não só ela em si. Com todo mundo voltado para
sobreviver àquele vírus, álcool em gel começou a ser objeto essencial nas
casas, nas bolsas, nos locais públicos. Estava em todo lugar. Potes gigantescos.
Mas quem poderia imaginar que isso seria fatal para muitos alcoólatras? Em
situações normais, não é recomendado que uma portadora do alcoolismo tenha em
casa qualquer tipo de substância que contenha álcool na fórmula.
E, naquele
momento, todos precisavam andar com um frasco na bolsa, não bastava ter um só
em casa. A cada passada de álcool na mão era o velho cheiro que reaparecia sob
as narinas dos alcoólatras, em recuperação ou não.
Isso provocou a recaída de muita
gente que frequentava as salas de AA a que eu costumo ir. Mas álcool em gel?
Amigos não doentes se espantam quando conto.
Sim, é algo avassalador, a doença
é traiçoeira e muitas pessoas não aguentaram ficar sozinhas com aquele cheiro
onipresente.
Alcoolismo é uma doença fatal,
progressiva e incurável, é o que aprendemos com a literatura de AA.
E, sim,
durante a pandemia foi fatal para muita gente. A combinação de álcool mais
isolamento foi um fim, ou quase, para muitos.
ALICE S. - artigo do jornal FSP