Cientista precisa ser um bicho
flexível
Inteligente é a tecnologia que deixa a gente pensar em vez de entregar
tudo pronto.
Cheguei à Austrália para ensinar colegas a
transformar em sopa os cérebros de criaturas locais –insetos, abelhas, aranhas
e, já, já também, águas-vivas inteiras variadas.
Porque eu quero saber se é
verdade mesmo que bichos dez vezes maiores têm dez vezes mais células e nada
como a simplicidade de águas vivas, praticamente desprovidas de órgãos internos,
para responder a essa pergunta.
Mandei de antemão a lista de ingredientes,
digo, reagentes e materiais, incluindo um microscópio de fluorescência,
equipado, além de luz branca, com luz ultravioleta, necessária para podermos
ver e contar os núcleos das células dos cérebros transformados em sopa –porque
o truque para contar células é não contar as células, e sim o núcleo guardado
feito semente dentro de cada uma.
Neurônios são células peculiares, cheias de
braços e protrusões e penduricalhos, e de tamanhos variados, que não se
espalham igualmente pelo tecido, tornando difícil a tarefa de contá-los por
amostragem.
Mas, transformando o cérebro em sopa, vão-se os neurônios,
dissolvidos em detergente, e ficam os seus núcleos, agora livres na sopa.
Contá-los na sopa é trivial: basta colher pequenas amostras da sopa e olhá-las
ao microscópio numa câmara graticulada, onde cada quadradinho tem um mesmo
volume.
São dez minutos para contar quantos núcleos cada quadradinho da sopa
contém, e daí é uma regra de três simples para chegar ao total de células no
cérebro todo.
Meus colegas me receberam com
tudo pronto, incluindo um microscópio instalado pela universidade
especificamente para nossos experimentos, imagina só.
Um Olympus modernoso,
todo eletrônico, com câmera digital operada por software no computador ao lado,
painel sensível ao toque para controlar as lentes e a luz do microscópio.
Luz
branca, gratícula à vista, certo. Luz ultravioleta, núcleos pintados de azul
fluorescente visíveis, certo também.
Mas não era possível usar as
duas luzes ao mesmo tempo, o truque fundamental para contar núcleos por
quadradinho.
O microscópio era chique demais, e todo automatizado para fazer o
que quase absolutamente todo cientista faz ao microscópio, que é usar OU luz
branca OU ultravioleta. Nenhum engenheiro da Olympus considerou que alguém
poderia querer usar uma E outra ao mesmo tempo.
Cientista tem que ser bicho
flexível. Tentei minha gambiarra de tempos da UFRJ, quando a luz branca morreu
e levaria US$ 500 e dois meses para conseguir uma nova: a luz da lanterna do
telefone, posicionada estrategicamente. Mas não dava: o Olympus chique era todo
fechado.
Fomos salvos pelo microscópio
bobão esquecido num canto do laboratório, todo manual, portanto com aquela
coisa linda de a gente ligar e desligar cada botão à vontade.
Usar as duas lâmpadas
ao mesmo tempo foi trivial. Problema resolvido: adoro tecnologia, mas nada como
equipamentos simples com controles transparentes, que permitem ao cientista
fazer o que der na telha.
Inteligente é a tecnologia que
deixa a gente pensar em vez de entregar tudo pronto.
SUZANA HERCULANO-HOUZEL - bióloga e neurocientista da Universidade Vanderbilt
(EUA).