Nada por mim


O crescimento das mídias sociais ajudou a reconfigurar as paranoias de comportamento e facilitar as resoluções de ano novo. Com a ajuda de aplicativos quase gratuitos e de um punhado de amigos nas redes é possível comer melhor, dormir mais e viver uma vida mais ecológica, saudável, produtiva e segura.

Seus usuários, fáceis demais, parecem incapazes de cuidar do corpo que possuem. Não vai demorar para que os programinhas que hoje registram calorias e horas de sono passem a computar fatores genéticos, pessoais e ambientais para recomendar a eles o que fazer, o que vestir, com quem andar e aonde ir.

Técnicas de mudança de comportamento partem do princípio de que é mais fácil realizar pequenas tarefas, administráveis, do que lutar contra a tentação munido apenas de força de vontade. Comuns em programas de combate a situações crônicas, como os Vigilantes do Peso e os Alcoólicos Anônimos, elas estão cada vez mais comuns no ambiente digital, em que usam neologismos marqueteiros como "quantified self" e "gamificação".

O primeiro a sugerir esse tipo de prática foi o controverso psicólogo americano B. F. Skinner, criador do behaviorismo radical. Ele acreditava que as pessoas poderiam ser programadas a tomar determinadas atitudes, desde que vissem bons resultados derivados delas --os chamados "reforços".

Skinner viu que muitos animais reagiam positivamente, repetindo-os até que se tornassem hábitos. E propôs que o ser humano reagiria da mesma forma, questionando a ideia do livre-arbítrio.

Depois de quase meio século de rejeição, as ideias de Skinner voltam a ativa nos aplicativos comportamentais. Eles estabelecem objetivos modestos para encorajar o progresso constante e reforços posteriores, medem rigorosamente os resultados para descobrir quais variáveis comprometem ou estimulam as conquistas, usam as mídias sociais para buscar apoio do grupo e criam novas tarefas para que o hábito se forme. Com o apoio dessas técnicas, o indivíduo quantificado e gamificado se transforma naquele indivíduo programável.

O problema das técnicas behavioristas é que a mudança de comportamento demanda o apego a determinadas rotinas, abrindo mão do livre-arbítrio. O usuário que se dedica a um desses programas reconhece não ser capaz de dar conta de si próprio, terceirizando o controle para o sistema.

É fácil ver aonde isso vai parar. Tecnologias de "big data", computação em nuvem e internet das coisas tendem a criar bolhas de isolamento cada vez maior, capazes de reconhecer mudanças de comportamento e se antecipar a novos desejos. Nas palavras do filósofo de tecnologia Albert Borgmann, "deixaremos de cuidar da casa para sermos cuidados por ela".

Por mais que seja eficiente para resolver problemas e hábitos que comprometem a saúde de seus usuários e dos que convivem com eles, a mecanização pode ser um perigoso instrumento de manipulação.

Usado com moderação, o behaviorismo digital pode ser uma bela ferramenta de autogestão. Em excesso, pode mecanizar seus usuários, comprometendo sua força de vontade. Na dúvida, o melhor é buscar independência para evitar que a máquina pense que você é dela.

Luli Radfahrer - professor-doutor de Comunicação Digital da ECA (Escola de Comunicações e Artes) da USP, trabalha com internet desde 1994 e já foi diretor de algumas das maiores agências de publicidade do país;  

Fonte: jornal Folha de São Paulo

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