O verdadeiro lobo brasileiro
Cachorro-vinagre,
do tamanho de um terrier, tem mordida possante comparável à de lobos, mostra
estudo.
Não me entenda mal, gentil leitor: sou um fã de
longa data do lobo-guará (Chrysocyon brachyurus),
um dos bichos mais lindos desta parte do mundo.
Mas o nome popular que deram a
esse canídeo não passa de propaganda enganosa. De lobo ele não tem quase nada.
Outra criatura que só existe por estas bandas merece muito mais a designação
lupina.
O verdadeiro lobo brasileiro, minha gente, é o cachorro-vinagre (Speothos venaticus),
conforme um novo estudo deixa bastante claro.
É possível que quem já tenha visto o bicho em
questão esteja segurando a risada ao ler isso.
De fato, além da designação
("vinagre"? Sério?), que não inspira terror algum, parece haver algo
de intrinsecamente fofucho naquele corpo atarracado e na cara de ursinho de
pelúcia. A espécie não costuma passar dos 7 kg, ora bolas.
Acontece que, apesar de sua distribuição geográfica
ampla, o cachorro-vinagre ainda é, em grande medida, um mistério.
"Arrisco
dizer que sabemos mais sobre o Tyrannosaurus rex do que sobre ele", disse-me
o biólogo Juan Vítor Ruiz, doutorando da Unesp de São José do Rio Preto (SP).
Discreto, o animal é difícil de monitorar na natureza. "Muito do que é
dito sobre essa espécie vem de observações em zoológicos e anedotas,
conhecimento indígena e bate-papo de sertanistas, contado de boca a boca ao
longo dos últimos séculos e publicado em livros populares."
Esse relativo desconhecimento inclui os detalhes
das técnicas de caça dos cachorros-vinagre.
Diante dessa limitação e da
dificuldade de deslocamentos ocasionada pela pandemia, a equipe da qual fazem
parte Ruiz e seu orientador Felipe Montefeltro resolveu fazer uma simulação
computacional da mordida da espécie, com base em modelos tridimensionais de seu
crânio, gerados a partir de tomografias.
O trabalho incluiu ainda uma comparação com os
modelos 3D dos crânios e mordidas de lobos (Canis lupus) e de
raposas-cinzentas (Urocyon cinereoargenteus).
A escolha das
espécies se justifica porque, de um lado, tal como os lobos, o cachorro-vinagre
é o que os especialistas chamam de hipercarnívoro —ou seja, mais de 70% de sua
dieta é composta por vertebrados.
Já as raposas-cinzentas comem tanto carne
quanto frutas e insetos (tal como o lobo-guará, aliás) e são mais ou menos do
tamanho do cachorro-vinagre.
Na pesquisa, que deve sair em breve no periódico científico
Journal of Anatomy, a equipe se concentrou principalmente no papel dos dentes
caninos e carniceiros (esses últimos são, digamos, os "fatiadores de
carne" da boca dos carnívoros).
Os pesquisadores examinaram também como
eles se comportariam em tarefas como perfurar o corpo da vítima, puxá-la para
trás com a força da mordida e sacudi-la de um lado para o outro.
E levaram em
conta, além disso, o nível de estresse ao qual os crânios dos bichos ficam
submetidos durante a mordida.
Resultado: embora o cachorro-vinagre tenha algumas semelhanças
com a raposa-cinzenta, seu "estilo" de ataque e a resiliência de seu
crânio lembram muito mais os dos lobos.
"Isso corrobora o conhecimento
popular, que retrata esse bicho como um hábil predador de mamíferos de médio e
grande porte, às vezes muito maiores do que ele", resume Ruiz.
Há relatos sobre grupos de cachorros-vinagre abatendo capivaras
e porcos-do-mato e até subjugando antas, por exemplo.
E não é por acaso —embora
tenha apenas um sétimo da massa corporal de um lobo, a mordida do animal tem
metade da força de seu primo do hemisfério Norte, revelou a análise. Em vez de
um ursinho de pelúcia, temos um Hércules nanico em nossas matas.
REINALDO JOSÉ
LOPES - jornalista especializado em biologia e
arqueologia, autor de "1499: O Brasil Antes de Cabral".