O problema da hipóxia silenciosa


O cérebro não mede oxigênio, mas o gás carbônico e o pH do sangue.

 

Um agravante da asfixia da Covid-19 é que uma boa fração dos pacientes não sabe que já sofria de hipóxia muito antes de chegar ao hospital.

Não é por falta de atenção ou conhecimento, trata-se de hipóxia silenciosa, em que o comprometimento dos pulmões faz faltar oxigênio no sangue, mas a pessoa ainda se sente bastante bem, obrigada.

Quando a angústia da sensação de asfixia finalmente chega e esses pacientes chegam ao hospital com níveis de oxigenação do sangue já acentuadamente baixos, a chance de morte é muito maior.

Esse maior risco foi bem documentado já no estudo chinês publicado no BMJ (British Medical Journal) sobre 274 pacientes atendidos até fim de fevereiro em Tongji, hospital de referencia para tratamento de pacientes com Covid-19. Agir cedo é fundamental.

As revistas médicas desta semana falam da hipóxia silenciosa do ponto de vista do espanto dos médicos com pacientes hipóxicos que até falam ao telefone. Mas a neurocientista em mim, que não é médica (para deixar bem claro antes que alguém me acuse de esquecer da minha própria especialidade), só vê outra pergunta. Se o nível normal de oxigenação do sangue é 98% ou mais, como é possível alguém cair a 60% e ainda se sentir bem?

A parte sobre “e ainda funcionar” me impressiona menos. O cérebro tem suas maneiras de dar um jeito e usar energia sem oxigênio o suficiente para enganar até o próprio usuário. Mas sentir-se “normal”?

A chave é saber que o cérebro não mede oxigênio, e sim o gás carbônico e pH do sangue, e é deles que dependem a sensação de asfixia e as mudanças compensatórias na respiração. Se a hipóxia é silenciosa, ou seja, sem a sensação de falta de ar, ou é porque a parte do cérebro que mede o estado do sangue pifou (o que é possível, dado que o vírus também infecta o cérebro), ou é porque...o CO2 no sangue ainda não subiu.

Fui lá consultar os dados sobre pacientes chineses no BMJ. Os holofotes focam os níveis de oxigênio, claro, que eventualmente fazem a diferença entre vida e morte. Mas está lá: 69% dos pacientes que acabaram morrendo, e só 25% dos que sobreviveram, chegaram ao hospital com níveis de CO2 no sangue muito abaixo do normal.

Tudo porque o cérebro ignora a oxigenação do sangue —não por opção, mas porque não tem meios de medi-la. Para quem acha que o cérebro é perfeito, taí uma santa decepção.

Donde alguns médicos recomendarem o uso de oxímetro em casa, aquele clipe que se coloca na unha. Endosso todas as ressalvas, e saliento a importância de acompanhamento médico, claro. Mas nesse caso, fornecer ao seu cérebro informação que ele de outra forma não tem pode ser uma das decisões mais importantes da sua vida.

Suzana Herculano-Houzel - bióloga e neurocientista da Universidade Vanderbilt (EUA).

Fonte: coluna jornal FSP

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