Freud
escutaria bebês de fraldas sobre o divã emitindo gugudadás.
Um
psicólogo, interpretado pelo canastrão Bruce Willis, ouve atônito do ator-mirim
Haley Joel Osment, seu paciente, a célebre confissão: “Eu vejo gente morta”. No
filme-truque de Shyamalan (O Sexto sentido, 1999), os parcos dotes
interpretativos do ator são colocados à prova diante de uma revelação
que abala toda a história.
Devo
ter feito a mesma cara de incredulidade e tédio que Willis, quando ouvi pela
primeira vez, ainda jovem, o termo “psicanálise com bebês”.
Ocorreu-me
a imagem de Freud, de charuto na boca, escutando um bebê de fraldas reclinado
sobre o divã emitindo “gugudadás”. Ainda não existiam para mim Dolto,
Winnicott, Eliacheff ou Laznik.
Nessa
mesma época, o atendimento psicológico às crianças já era quase palatável para
o senso comum, e a facilidade de as escolas encaminharem alunos com problemas
de aprendizagem e outras dificuldades para esses profissionais só foi
aumentando com o passar dos anos.
Os
pais que recebem esse encaminhamento sabem de antemão que se usa o recurso
lúdico e outras técnicas expressivas para escutar e tratar crianças,
diferentemente do que se costuma fazer com adultos. A escuta é a mesma, os
métodos são diferentes.
Com
os bebês a situação é menos deduzível e um tanto mais curiosa.
Se
voltarmos à piada do bebê no divã, matamos uma parte da charada. Bebês precisam
de quem os assuma e nunca estão, ou nunca deveriam estar, sem acompanhamento de
um adulto. Então, ao falar com o bebê, falamos necessariamente com quem cuida
dele, seja mãe, pai, avó, assistente social, enfermeiro.
Quanto
ao “gugudada”, se prestarmos atenção, somos capazes de perceber, sem a ajuda de
qualquer especialista, que bebês se comunicam de forma intensa usando todo
o corpo.
Choros,
risos, sons, expressões e movimentos fazem parte da conversa entre pais e bebês
desde a sala de parto, e o puerpério nada mais é do que a trabalheira de
entender esse vocabulário e a forma de responder à ele. É fome, é sono, é
tédio? E lá vão os pais tentar de tudo para aprender o alfabeto singular de
cada filho que chega.
Ninguém
precisa —e nem deveria!— ensinar mães e pais a ouvir ou falar com seus bebês.
Eles fazem isso, alguns desde a gravidez, sem que ninguém precise
treiná-los.
Somos
humanos e existimos como tais a partir da linguagem, por que perderíamos essa
capacidade diante de nossos próprios bebês?
Algumas
razões seriam: situações traumáticas que emudecem os pais, depressões graves,
desautorização a pais e mães de serem espontâneos com seus bebês —associada à
ideia de que deveriam aprender como fazê-lo.
Bebês
são afetados por coisas que lhes são ditas, pelo tom em que são ditas, pelas
intenções de quem as diz. São afetados de forma tão direta que tanto os ditos,
quanto os não ditos sobre experiências importantes agem sobre seus corpos até o
ponto de adoecimento. Eles são herdeiros de uma história que os antecede e que
nem sempre é fácil de viver/contar.
Há
alguns anos, falava a um bebê na UTI sobre ele ter sido jogado no lixo por sua
mãe ao nascer (falava a pedido e na presença dela). A mãe era uma jovem
adolescente apavorada, que viu sair de si algo que lhe parecia incompreensível:
um bebê. Ela não se acreditava adulta o suficiente para fazer um
filho.
Às vezes, pais e bebês surgem em circunstâncias
adversas. Podemos falar com eles sobre isso e vê-los criar uma nova versão ou
podemos ignorar que é da linguagem que emergem nossas histórias.
Vera Iaconelli - diretora do Instituto Gerar, autora de “O Mal-estar
na Maternidade”. É doutora em psicologia pela USP.
Fonte: jornal FSP