Atualidade
da obra de George Orwell é sinal dos nossos tempos
Cena do filme "1984", de 1955, baseado na obra
de George Orwell
No ano que vem serão celebrados os 70 anos de “1984”, de
George Orwell, um dos grandes livros do século 20.
Engana-se quem imagina uma história desmentida pelo
tempo ou capaz de inspirar programas frívolos de TV. Na ficção de Orwell, um
novo idioma vai se disseminar em 2050, quando estariam inviabilizadas outras
formas de pensamento.
A relevância de “1984” pode ser aferida pela
controvérsia sobre o tamanho do público na posse do presidente Donald Trump: o
romance (1949) entra na lista dos mais vendidos nos EUA em janeiro de 2017 e a
segunda adaptação do livro para o cinema (com John Hurt e Richard Burton) é
exibida em cerca de 200 salas independentes como protesto político.
Com o colapso do bloco soviético, o perfil do “Grande
Irmão” está em aberto. O pensamento politicamente correto é uma das
alternativas de poder: “quem controla o passado controla o futuro; quem
controla o presente controla o passado”.
O mundo sombrio de George Orwell (1903-1950) cancela,
aniquila e “vaporiza” pessoas. Antes havia privacidade, amor, amizade. Agora,
um dos desafios do “partido” é “descobrir o que um ser humano está pensando, à
revelia dele”, é “arrancar” até o “último detalhe” de tudo o que se diz e
pensa.
Nas páginas do Facebook, rede que se apropria de
informações de mais de 2 bilhões de usuários, aparece a pergunta: “What’s on
your mind?”, “No que você está pensando?”
No cenário de Orwell arquivos são reescritos, vocábulos
indesejáveis são eliminados, pessoas desaparecem. O Facebook diminui a
visibilidade do jornalismo profissional, controla páginas políticas, divulga e
restringe “fake news”, remove grupos de ódio, terroristas e assassinos
reincidentes.
Em 2005, a Biblioteca Nacional da França eliminou do
cartaz da exposição em homenagem a Jean-Paul Sartre (1905-80) a bituca de
cigarro que está no retrato original.
Para a mutabilidade do passado, Orwell cria a
“despessoa”. Desejar é pensamento-crime. O Spotify remove o rapper R. Kelly
(suspeito de abusos sexuais) de seus algoritmos e playlists. O cineasta
foragido Roman Polanski é expulso da Academia de Artes e Ciências
Cinematográficas.
Se em Orwell crianças buscam sintomas de “inortodoxia”
em seus pais, para denunciá-los, na Argentina, filhos de criminosos contra a
humanidade reivindicam uma lei que permitiria o testemunho contra os próprios
pais.
“Oceânia” tem “Ministério da Verdade” (responsável por
notícias, entretenimento, educação e belas-artes), “Departamento da Ficção” e
“Liga Juvenil Antissexo”. O fundador do Facebook Mark Zuckerberg, o rosto ainda
adolescente, sugere uma “Suprema Corte” com pessoas “de fora” para julgar
conteúdo.
Além de ambicionar o desenvolvimento “seguro” da
inteligência artificial e a colonização de Marte, o milionário sul-africano
Elon Musk promete um site (“Pravda”) para monitorar a credibilidade da mídia.
A nova tradução de “1984” (Companhia das Letras, 2009)
prefere “Polícia das Ideias” a “Polícia do Pensamento” (Companhia Editora
Nacional, 1957), aparentemente mais totalitária e mais próxima do original,
“Thought Police”.
É fácil conceber o banimento de manifestações
politicamente incorretas, como o verso medonho de Vinicius de Moraes (“As muito
feias que me perdoem/Mas beleza é fundamental”), capaz de ferir autoestima, ou
o banimento moral do poeta. A arte dependerá das atitudes e do juízo do
artista?
Na distopia de “1984” ninguém é cidadão. No Facebook há
também “dois minutos de ódio”. A recente lei de proteção de dados da Europa
quer proteger consumidores, mas cada vez mais somos produto.
Luís Francisco Carvalho Filho - advogado criminal e presidiu a Comissão Especial de
Mortos e Desaparecidos Políticos.
Fonte: FOLHA DE SÃO PAULO