A disposição
de algumas pessoas em narrar histórias pessoais e familiares publicamente, em
programas de rádio e TV, é resultado de uma trama de
relações que abarca trabalho e lazer, ganhos materiais e simbólicos. A
conclusão é da socióloga Maíra Muhringer Volpe, autora do estudo O divã no palco: discursoterapêutico, indústria cultural e a produção de bens culturais com pessoascomuns, defendido na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas (FFLCH) da USP.
Em sua tese de doutorado orientada pela professora Irene de
Arruda Ribeiro Cardoso, Maíra buscou entender os motivos pelos quais algumas
pessoas tratam de suas questões íntimas na TV e no rádio. Para tanto, analisou
os programas de TV Casos de Família (SBT), Márcia
(Bandeirantes) e No Divã do Gikovate (Rádio CBN), nos
quais pessoas relatavam conflitos para serem comentados por psicólogos no
palco. Segundo a pesquisadora, essas emissões — com produções e públicos
pertencentes a grupos sociais diferentes — são versões brasileiras de programas
veiculados na França e em outros países, nas quais um discurso terapêutico é
divulgado. Esse discurso consiste na diversificação da abordagem psicológica,
ou seja, na difusão de orientações psicoterapêuticas ao grande público.
No caso do programa No Divã
do Gikovate, havia a procura pelo discurso terapêutico, sendo os
conselhos e comentários do doutor Gikovate valorizados. No âmbito da televisão,
os participantes também queriam ter suas histórias comentadas pelos profissionais “psi”, pois as orientações
desses profissionais apresentavam legitimidade, diante dos participantes, para
explicar e discernir entre o que era “certo” e “errado”.
O âmbito televisivo
apresentava ainda algumas peculiaridades. Alguns dos participantes pretendiam
transmitir uma “mensagem particular”, ou seja, se comunicar com alguém que não
estava implicado naquela montagem do “caso”, no palco. Outros julgavam que suas
histórias eram de “utilidade pública” e mereciam ser objeto de uma discussão
ampla. Havia ainda quem buscasse reclamar de suas condições precárias de vida e
quem almejasse seguir carreira no mundo artístico, de modo que aparecer na
televisão seria um passo nessa direção.
A pesquisa revela também
que a aceitação e a produção desses programam não são uniformes. Ao serem
produzidos para grupos socialmente vulneráveis (com baixa escolaridade,
inserção precária no mercado de trabalho e residentes em áreas periféricas da
cidade), os programas de TV acabavam mostrando seus participantes com um tom
jocoso, como pessoas que não sabem conversar e que são consideradas
“estouradas”, “folgadas”, até agressivas. No entanto, no caso do rádio,
produzido para grupos da classe média, havia uma maior legitimação social para
as pessoas falarem de si e de seus conflitos psicológicos. Os programas expunham,
assim, noções diferentes de intimidade segundo o grupo social ao qual se
dirigiam.
Uma estrutura reveladora
Maíra conta que as pessoas participantes não são simplesmente enganadas pela
equipe de produção desses programas. “Todos os envolvidos, do diretor aos
convidados do palco, passando pelos trabalhadores informais que integram a
plateia, conhecem as regras do jogo social e as manipulam de acordo com suas
capacidades e sua posição na cadeia de produção”, afirma, ressaltando ainda: “É
importante acrescentar que a possibilidade de ação e obtenção de ganhos não
minimiza a exploração que sofrem”.
A pesquisa também
ressalta que, entre os profissionais informais contratados, há um grande número
de mulheres de meia idade, já fora do mercado formal de trabalho, com baixa
escolaridade e residentes em bairros periféricos. Elas atuam junto à equipe de
produção dessas atrações, recebendo uma remuneração em bens materiais ou
simbólicos. “Mesmo sendo trabalhos precários e que exploram a vulnerabilidade
social desse grupo, as mulheres contratadas informalmente percebem suas funções
como importantes, por tirarem-nas do insulamento familiar, por ajudarem-nas a
manter a saúde tanto física quanto psíquica e por lhes garantirem um rendimento
regular, o que lhes confere autonomia em relação aos maridos”.
Pesquisa além-mar
Para realizar o estudo, Maíra passou três anos participando das gravações
desses programas. Realizou entrevistas com os participantes, com os integrantes
da plateia e também com produtores e profissionais, além de conversar com
psicólogos. Além disso, a pesquisadora também fez estágio doutoral na École des
Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris, com uma bolsa de um ano cedida
pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Maíra
também pesquisou emissões francesas semelhantes às brasileiras no Instituto
Nacional de Audiovisual da França, onde, além de estabelecer comparações entre
as emissões do Brasil, também pôde discutir as semelhanças e diferenças entre
esses programas e os franceses.
Ana Paula Souza –
jornalista
Fonte: site controversia