Michio Kaku tem um dom pouco comum entre os
cientistas. Ao mesmo tempo que domina o jargão incompreensível da academia,
Kaku se comunica com o público leigo com admirável facilidade. Na Universidade
da Cidade de Nova York, Kaku pesquisa e ensina física teórica. Fora do campus,
é um dos mais conhecidos divulgadores científicos nos Estados Unidos. Por meio
de livros e documentários, Kaku traduz os avanços da ciência e suas
consequências no dia a dia. Em A física do futuro – Como a ciência transformará
o cotidiano em 2100, seu novo livro que sairá nos Estados Unidos em
março, Kaku sonha longe. Ele parte das tecnologias de ponta que só existem em
laboratório para extrapolar seus usos em potencial daqui a um século. E diz que
não é apenas ficção científica.
QUEM É
O físico americano Michio Kaku, de 64 anos, é professor de física teórica da
Universidade da Cidade de Nova York
O QUE FAZ
Kaku pesquisa a Teoria das Cordas, candidata à teoria final que explicaria a
natureza do Universo. Kaku é um conhecido divulgador da ciência e apresentador
de documentários de TV
O QUE PUBLICOU
Escreveu uma dúzia de livros, entre eles Hiperespaço (1994), Mundos
paralelos (2004) e A física do impossível (2008)
ÉPOCA –
Em seu novo livro, o senhor se atreve a descrever as tecnologias que serão
dominantes em 2100. Não é um arriscado exercício de futurologia falar do mundo
daqui a 100 anos?
Michio Kaku – O livro é o resultado de minhas conversas e entrevistas com
300 cientistas, os mais importantes pensadores do futuro em todo o mundo. Eu os
entrevistei para documentários no Discovery Channel e na PBS (Public
Broadcasting Service, a rede de TV pública americana). Também apresento um
programa de rádio em rede nacional, no qual entrevisto dois cientistas por
semana. A física do futuro surgiu da reunião das considerações daqueles
pesquisadores sobre os próximos 100 anos.
ÉPOCA –
O livro aborda tecnologias que existem em laboratório. Por que esperar?
Kaku – Sim, essas tecnologias existem na forma de protótipos. Assim, não
estou falando de ficção científica, mas de tecnologia de verdade. As
tecnologias que apresento no livro sairão do laboratório para invadir nosso dia
a dia nos próximos 20 ou 30 anos. Mas, quando avançamos 50, 80, 100 anos no
futuro, é preciso mudar o referencial. Em 1900, na época de nossos tataravôs e
bisavôs, não havia televisão, nem computadores, nem internet. Os automóveis
eram artigos de luxo exclusivos dos muito ricos. O mundo se movia em carroças
puxadas por cavalos. O telégrafo era uma tecnologia de ponta, e o
recém-inventado telefone era uma distração das elites. Meu avô veio do Japão
para os Estados Unidos há um século. Se estivesse vivo, ele nos veria como se
fôssemos bruxos, capazes de assistir ao vivo imagens transmitidas do outro lado
do mundo e conversar instantaneamente com outras pessoas à distância. Para meu
avô, nós seríamos feiticeiros. Por analogia, se alguém de 2100 voltasse hoje à
Terra, nós o veríamos não como um bruxo, mas como um deus grego.
"Somos bruxos que usam elétrons para processar dados pela
internet.
Mas ninguém ainda consegue fazer um carro a partir do nada"
ÉPOCA –
Por que grego?
Kaku – Pense as coisas que os deuses gregos eram capazes de fazer. Segundo
a mitologia, Zeus era capaz de controlar pessoas e mover objetos com o
pensamento. É o que quero dizer quando afirmo que, para nós, o homem de 2100
seria visto como um deus, nunca um bruxo. Os bruxos recorrem à magia, usam
varinhas, fazem poções, declamam encantamentos. Aos deuses basta o desejo. O
homem do futuro acessará informações e criará novas realidades usando a mente
ou um aceno das mãos.
ÉPOCA –
Se, para seu avô, nós pareceríamos bruxos, o controle remoto é uma varinha
mágica. O senhor quer dizer que o controle remoto desaparecerá?
Kaku – Mais que isso. Ele não será necessário. Falo da possibilidade de
criar objetos a partir do nada. Imagine que você queira materializar um carro
aqui e agora. Nenhum bruxo seria capaz de fazê-lo. Esqueça o Windows e a Apple.
Nenhum programa da Microsoft permite materializar um objeto tridimensional. Não
estou falando de programas de computador. Estou falando de matéria programável,
matéria que pode ser controlada para assumir formas e desempenhar funções, como
a lâmpada deste abajur que ilumina o ambiente. A diferença entre um bruxo e um
deus é que o bruxo manipula elétrons para obter luz, eletricidade, lasers...
ÉPOCA –
Essa lâmpada foi fabricada e plugada numa rede elétrica igualmente projetada e
construída. Em 2100, bastará dizer “faça-se a luz!” e abracadabra?
Kaku – Sim, só que sem o abracadabra. Somos bruxos que usam elétrons para
processar informações num computador e enviar pela internet. Mas nem você nem
eu somos capazes de materializar coisa alguma. O ser humano não descobriu como
criar formas de vida que jamais existiram na Terra. Não podemos mentalizar um
carro e vê-lo surgir na nossa frente. Essa é a diferença entre a tecnologia que
mudará nossa vida em 30 anos e o que será possível em 2100.
ÉPOCA –
Professor, continua complicado. Seja mais claro.
Kaku – Existe nos laboratórios uma nova tecnologia chamada matéria
programável. Ela se baseia na produção de chips menores que um grão de areia.
ÉPOCA –
É a nanotecnologia?
Kaku – Não. A nanotecnologia ainda é uma promessa distante. Apesar de quase
invisíveis, os chips de matéria programável são milhões de vezes maiores que os
nanorrobôs, os robôs moleculares imaginados pela nanotecnologia. Estou falando
da tecnologia de sistemas micromecânicos (MEMS, em inglês), mais
especificamente de um novo ramo da MEMS chamado claytrônica. A claytrônica usa
robôs diminutos como grãos de areia (clay, argila na tradução do inglês).
Em cada grão, haverá um supercomputador. Os grãos terão carga elétrica positiva
ou negativa. Ao controlar suas cargas, controlaremos os grãos. Por serem
pré-programados, a um comando eles se conectarão uns aos outros, criando
objetos. Assim, de um monte de areia surgirá um carro ou qualquer objeto tridimensional
que se queira.
ÉPOCA –
Como são tais grãos? Já existem?
Kaku – Eles se chamam “cátomos” (do inglês catoms, contração de “átomos
claytrônicos”). Os cátomos poderão se mover, comunicar-se uns com os outros
e mudar de cor. Em 2009, a Universidade Carnegie Mellon, em Pittsburgh, Ohio,
realizou uma demonstração pioneira do funcionamento dos cátomos. Eles só são
visíveis ao microscópio.
ÉPOCA –
O que isso tem a ver com o poder dos deuses gregos?
Kaku – Tente imaginar como será nossa vida quando os “cátomos” se tornarem
realidade, uma parte invisível do cotidiano. No dia em que sua mulher se cansar
do sofá da sala, bastará controlar os cátomos constituintes do sofá para ele
mudar de forma. Eles se rearranjarão instantaneamente. O sofá desaparecerá. Em
seu lugar surgirá uma mesa. Pense nas consequências dessa tecnologia quando ela
se disseminar.
ÉPOCA –
Não será preciso produzir mais nada, a não ser cátomos e a energia para
alimentá-los – além da comida para nos alimentar? As fábricas fecharão?
Kaku – A invenção da máquina a vapor desencadeou o mesmo tipo de crítica há
150 anos. Diziam que as tecelagens inglesas fechariam, que os trabalhadores
perderiam o emprego. Por volta de 1900, com a eletrificação das cidades, a
caldeira a vapor foi aposentada. Na mesma época, carros movidos a combustão
interna começavam a tomar as ruas, decretando o declínio das ferrovias e do
navio a vapor. Agora, começa a substituição do carro a gasolina pelo elétrico.
Ninguém parece infeliz. O que dizer dos meios de produção em 2100? Nem sabemos
se ainda haverá fábricas em 2100?
Fonte: revista Época