Tecnologia muda rápido demais para supormos que a próxima geração a
entenderá completamente
Chame isso de princípio de Abe
Simpson.
O patriarca do desenho animado, ao ouvir seu filho Homer dizer que não
estava "com a coisa", respondeu: "Eu estava com a coisa, mas
então mudaram o que era a coisa. Agora, o que eu tenho não é a coisa, e o que é
parece estranho e assustador para mim".
Então avisou ao filho: "Vai
acontecer com você".
Vovô Abe estava certo. Quando o
termo "nativo digital" foi cunhado, eu costumava ser um deles.
Faço
parte do grupo que cresceu na era da informática. Tenho uma memória longínqua
do computador da minha mãe –um negócio branco e volumoso que rodava Paciência,
Campo Minado e um punhado de jogos do MS-DOS– parecendo brevemente um intruso
em nossa casa, mas não me lembro do tempo antes de ele chegar.
Do que eu me lembro é quando
instalaram nossa banda larga, que me tornou uma das poucas pessoas em meu
círculo social que não precisava ouvir as temidas palavras: "Saia do MSN
Messenger, preciso fazer uma ligação".
No entanto, o princípio Abe
Simpson chegou até mim. Recentemente, participei de uma conversa a portas
fechadas com especialistas e formuladores de políticas sobre inteligência artificial e os desafios que
ela representa para os reguladores.
Um dos participantes observou que, embora o
desafio fosse "grande demais" para o atual grupo de reguladores, ele
seria resolvido pela atual geração de nativos digitais.
Eu escutei, esperando descobrir
algo sobre mim e por que eu estava bem posicionado para resolver esse problema.
Em vez disso, percebi que não sou mais um nativo digital.
Além do mais, o que é
um nativo digital agora me parece estranho e assustador. Para mim, significava
crescer na era após o advento do computador pessoal e quando os telefones
celulares eram comuns.
Agora, parece significar ter crescido numa era em que
você tem acesso à internet 24 horas, quer queira quer não,
e tudo, desde conspirações rebuscadas até pornografia violenta, é canalizado
para o seu feed de rede social.
De certa forma, isso não é nada
surpreendente. Embora eu tenha um celular desde o início da adolescência e um smartphone logo depois, cresci num
momento em que meu acesso à internet era facilmente monitorado –algo que meus
colegas e eu considerávamos um fato da vida.
Tínhamos uma compreensão intuitiva
da tecnologia melhor que a de nossos pais, mas eles ainda detinham os controles
e, na maioria dos casos, o controle do único computador.
O que significa ser um nativo
digital mudou drasticamente porque a definição de "digital" também
mudou.
E continuará mudando: uma criança que entre na escola pela primeira vez
hoje terá apenas uma memória incompleta do mundo sem IA.
Em consequência, a ideia de
natividade digital está se tornando menos, e não mais, valiosa. Houve um ponto
em que a separação entre um nativo digital e um não nativo era clara o
suficiente para ser útil.
Mas até a distância entre mim –que uso computador
desde que me lembro– e alguém que, por ser apenas cinco anos mais moço, teve um
smartphone desde o início da adolescência, já é bastante grande.
A distância
entre nós dois e alguém que cresceu com um tablet desde que nasceu é ainda
maior.
Além disso, não é apenas o
hardware que está mudando. O software também. A tecnologia moderna é ao mesmo
tempo mais fácil e mais difícil de usar. Quando criança, eu conseguia
configurar meu PlayStation sem ajuda –hoje isso acabaria com uma criança
chorando e um console de jogos quebrado.
Mas outros desenvolvimentos, não
apenas em IA, significam que toda uma gama de tarefas de codificação outrora
complexas está hoje ao alcance de pessoas que não distinguem seu Ascii de seu
Cobol.
Portanto, a ideia de que uma
próxima onda de nativos digitais será capaz de regular melhor, resolver
questões políticas complicadas ou evitar os perigos com os quais lutamos é uma
ilusão alarmante.
A primeira geração de pais nativos digitais também é a
primeira a dar smartphones a seus filhos desde a infância, decisão hoje
frequentemente criticada por professores e especialistas. (E, eu acho, uma que
é improvável que se repita.)
Os nativos digitais podem ter se
tido mais sucesso ao navegar no mundo do comércio eletrônico.
Mas há poucas
evidências de que tenhamos sido melhores em regulamentar essas indústrias,
talvez porque, assim como nossos antepassados, nosso sucesso esteja em
construir um novo mundo que nós mesmos não entendemos totalmente.
A confusão que vem de fases de
mudanças tecnológicas muito rápidas que superam o know-how da geração presente
ainda não acabou.
Se você estiver procurando novas ideias de produtos ou
melhores maneiras de explorar as tecnologias existentes, a próxima onda de
nativos digitais poderá ajudá-lo.
Mas se você os estiver vendo como a solução
para questões regulatórias ou políticas iminentes, lembre-se de que a regra de
Abe Simpson chega para todos, mais cedo ou mais tarde.
Tradução de Luiz Roberto M.
Gonçalves
STEPHEN BUSH –
jornalista, associado ao Financial Times