Ponto e vírgula é legal; não é?
Sinal
de pontuação que Machado amava não foi bem tratado pelo século 20.
O ponto e vírgula (;) é, como se sabe, sujeito
singular, apesar do disfarce desse “e” no meio; um sinal de pontuação que vem a
ser uma cópula de sinais, ponto em cima, vírgula em baixo; meio a meio, e
inteiramente fora de moda.
É claro que isso varia de língua para língua.
Falo
do português brasileiro; uma língua na qual, convenhamos,
o ponto e vírgula estaria hoje quase inteiramente restrito a documentos formais
—ou a um certo beletrismo de província, ou a crônicas metalinguísticas como
esta— se não fosse imprescindível para desenhar aquela carinha sorridente que
pisca ;) .
Afirmar que o ponto e vírgula já virou ou está
virando um sinal de pontuação de época é simples constatação.
Não faltará quem
negue o fato, proclamando vivíssimo o sinal duplo; nem quem, admitindo seu
relativo desuso, deplore a ignorância dos falantes por mais esse sintoma
clamoroso de decadência cultural.
Na vida real, o ponto e vírgula que Machado de Assis amava —o que basta,
óbvio, para garantir sua imortalidade enquanto o português brasileiro existir—
não foi muito bem tratado pelo século 20.
O estilo modernista deu início à sua rejeição,
identificando-o com afetações bacharelescas; e na segunda metade do século a
língua objetiva e direta da imprensa moderna completou o serviço, condenando-o
ao relativo ostracismo de hoje.
Digo relativo porque há uma exceção à regra.
No
manual de estilo que, conscientemente ou não, quase todos os jornalistas dos
últimos 50 anos seguem, restou ao ponto e vírgula uma única função; importante,
mas solitária.
Estou falando do papel de, numa enumeração, separar elementos
que contenham vírgulas internas.
As vírgulas habituais tornam-se inadequadas
para a tarefa por motivos evidentes; é preciso criar uma hierarquia.
Assim: “Ao longo da pandemia,
Bolsonaro boicotou o combate ao vírus por três vias principais: a caneta, os
atos administrativos indutores de confusão sem trégua; o exemplo, da recusa da
máscara à atração por aglomerações; e a fala, a vasta coleção de disparates
negacionistas”.
Sem o ponto e vírgula, seria
mais difícil para o leitor discriminar os três elementos da enumeração; a
utilidade do vetusto sinal de pontuação para a clareza do enunciado fala mais
alto que seu cheiro de naftalina.
Nos demais casos, tornou-se
comum que as funções do velho ponto e vírgula sejam desempenhadas no português
brasileiro contemporâneo culto —mas não formal— por um destes sinais, conforme
o caso: ponto, vírgula, dois pontos ou travessão.
O velho sinal de personalidade
equívoca —representante de “uma pausa mais forte que a vírgula e menos que o
ponto”, na definição do gramático Evanildo Bechara— foi ficando cada vez mais
identificado com certo pedantismo.
Não acho que caiba lamentar. Há
pouco tempo um desses trolls que ficam de tocaia nas esquinas do mundo digital
me lançou a seguinte ofensa: “Diz que é escritor, mas nem sabe usar ponto e
vírgula”.
Ri bastante, a princípio;
depois fiquei pensativo.
Como eu não tinha usado ponto e vírgula algum naquele
momento, entendi que justamente em tal pecado devia residir a prova de que,
apesar de me dizer escritor, não o sou. No panorama mental do sujeito,
escritores usam ponto e vírgula; e ponto final.
Nesta coluna uso um punhado
deles, é verdade; mas não acredito que conseguisse agradar ao exigente leitor,
uma vez que o faço com claros propósitos de ilustração e sátira.
Sérgio
Rodrigues - Escritor
e jornalista, autor de “O Drible” e “Viva a Língua Brasileira”.