Freud
nos ensinou que a lógica do sofrimento pessoal não é diferente da lógica do
sofrimento social
Os sujeitos vêm para a análise alegando que a mãe, o
esposo (a), chefe, filhos são o inferno, fazendo da máxima sartreana —"o
inferno são os outros"— seu mantra pessoal. Se esses outros
melhorassem, sua vida seria perfeita! Cabe ao analista dar as boas e más
notícias. Sinto muito, mas nem sua mãe, nem esposo(a) etc, se deram ao trabalho
de vir, ou seja, resta a você assumir sua queixa ou nada feito.
Reconhecer-se parte do problema fere nossa frágil
autoimagem, que defendemos a qualquer preço. Jogar nosso lixo na caçamba alheia
pode parecer bom negócio, mas é a marca de uma vida de alienação e sofrimento.
As boas novas são que ser parte do problema é também ser parte da solução.
O psicanalista austríaco Sigmund Freud posa fumando
charuto, em foto feita por seu sobrinho Max Halberstadt em 1921 - Max
Halberstadt/AP
Outro jeito de chegar na análise é "sob
diagnóstico". Algo como: bom dia, sou o Antônio Panicado, ou Maria
Depressiva ou ainda José TDAH. Passamos a ter como sobrenome algum diagnóstico
sacado do Google ou de profissionais diversos —por vezes nem letrados em saúde
mental! Nos apoiamos em rótulos que podem trazer algum alento diante da
indeterminação de nossos sintomas, mas ferem nossa possibilidade de nos
escutarmos. Como se dizer "deprimido" ou "bipolar"
respondesse quem sou.
Também temos a dúvida atroz a nos arrastar para o divã.
Faço ou não faço, assumo ou não assumo. E, como escolher é perder o que foi
preterido na escolha, percebe-se logo como as negociações podem ser difíceis,
pois no fundo insistimos na fantasia da escolha sem perda. Como sonhar com um
Brasil sem violência e terror, sem abrir mão de históricos privilégios sociais
e econômicos —cinicamente interpretados como fruto de mérito individual.
Algumas pessoas acham que vão se tornar analistas
profissionais ou ainda —pasmem!— "coaches", por fazerem análise.
Não há analista que não tenha empreendido ele mesmo uma análise, mas tampouco
uma análise é suficiente, sendo necessário estudo contínuo e supervisão. Além
disso, de uma análise só conhecemos o primeiro movimento do jogo --dizia Freud
ao compará-la ao jogo de xadrez-- sem podermos antecipar seu desfecho.
Seguindo minha galeria não exaustiva de situações, que
me inclui, posto que também eu tive meu começo de análise, guardo lugar para o
sujeito que demanda uma análise por diletantismo ou curiosidade. Nesses casos,
geralmente, ou o sofrimento está tão inacessível que o sujeito ainda não foi
capaz de reconhecê-lo, ou ele não entendeu do que se trata uma análise. Análise
é "terra de bravos", leia-se, dos que encaram a duríssimas penas seus
medos e não dos que supõem que não os têm.
Mas, acima de tudo, chegamos na análise porque sofremos
demais e, em algum lugar mais ou menos consciente, sabemos de nossa parcela de
responsabilidade por esse sofrimento e ansiamos por uma vida melhor. Reconhecer
essa parcela nos dá a única chance de mudar.
Freud
nos ensinou que a lógica do sofrimento pessoal não é diferente da lógica do
sofrimento social. Hoje nosso mal-estar social se manifesta na guerra civil
carioca, no extermínio de jovens da periferia e no assassinato de pessoas que
se atrevem a defender os direitos humanos em nosso país. Teremos coragem de
assumir isso ou continuaremos a dizer que não temos escolha e que o
"inferno são os outros"?
Vera
Iaconelli - psicanalista, fala sobre
relações entre pais e filhos, mudanças de costumes e novas famílias do século
21.
Fonte:
coluna jornal FSP