Para
Joe Davis, é preciso unificar conhecimentos, como no Renascentismo
Artista e cientista Joe Davis durante viagem ao deserto
de Negev, em Israel -
Resumo: O
cientista do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) e do Departamento
de Genética de Harvard defende o retorno a uma visão unificada do conhecimento,
vigente na Antiguidade
e no Renascimento. Ele fará simpósio na Bienal de Arte Digital no Rio sobre o
conceito de artista híbrido, que une arte e ciência.
Marcus Vitruvius Pollio (c. 80 a.C.-15 a.C.), que
inspirou o famoso desenho do "Homem Vitruviano", de Leonardo da Vinci
(1452-1519), foi um polímata romano que viveu na era de César Augusto
(imperador de 27 a.C. a 14 d.C.). Vitrúvio se tornou célebre por sua magistral
obra "De Architectura" —tida como o primeiro tratado teórico sobre
arquitetura— que foi perdida na Antiguidade e redescoberta no Renascimento
italiano.
Publicado pela primeira vez no século 15, o livro de dez
volumes traz em seu primeiro capítulo a ideia de que artistas e arquitetos
devem ter conhecimentos tanto teóricos quanto práticos. Seguindo essa ideia, o
lema vitruviano, "Mens et Manus" [mente e mãos], que aparece no
brasão do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), sugere que a
habilidade prática precisa vir acompanhada de rigoroso saber acadêmico.
Para Vitrúvio, artistas precisam ser criativos tanto
quanto precisam ter capacidade de aprender. Ele recomendava que artistas
soubessem alguma coisa sobre medicina e sobre os movimentos e as proporções do
corpo humano —convicção que inspirou a obra de da Vinci 1.500 anos depois.
Em "De Arquitectura", ele escreveu: "Ele
[o artista] deve ser um bom escritor, um desenhista habilidoso, versado em
geometria e ótica, especialista em números, conhecedor de história, informado
quanto aos princípios da filosofia moral e da natureza, músico ocasional, não
ignorante sobre as ciências tanto da lei quanto da física, nem dos movimentos,
leis e relações mútuas entre os corpos celestes (...). E por ser a arte formada
e adornada por tantas ciências diferentes, sou da opinião de que aqueles que
não tenham galgado gradualmente até o topo não podem, sem presunção, se
descreverem como mestres nela".
No entanto, com o passar do tempo, as estruturas
seculares incorporadas ao ensino superior e aos negócios viriam a tirar de cena
esse ideal renascentista, que foi substituído pela
ideia de que as artes e as ciências se tornaram especializadas e complicadas
demais —tornando impossível para qualquer indivíduo fazer contribuições
significativas nos dois campos.
De alguma forma, Vitrúvio parece ter antecipado essa
reação 2.000 anos atrás: "Talvez, para os desinformados, pode parecer
inexplicável que um homem seja capaz de reter em sua memória tamanha variedade
de conhecimento. (...) Da mesma forma que um corpo é composto de diferentes
membros harmoniosos, o ciclo de aprendizado constitui um sistema harmônico. Por
isso, aqueles que desde jovens são introduzidos a diferentes áreas de
conhecimento têm uma facilidade em adquirir conhecimento sobre tudo, pela
conexão que existe entre elas".
Vitrúvio parece acreditar que a unidade do conhecimento
é intrínseca: tudo já existe como uma espécie de todo sincronizado, e é apenas
a maneira pela qual interligamos as coisas que as torna inovadoras. As ideias
sobre uma grande síntese do conhecimento inspiraram as primeiras universidades
e centros de aprendizado na Europa, na China e no Japão medievais, e também a
fundação das grandes academias do Iluminismo europeu.
COMPARTIMENTOS
Em nossa era, contudo, os artistas não aprendem sobre física ou química, direito oufilosofia, medicina ou astronomia. As conexões profundas entre a
arte e a matemática estão praticamente esquecidas e, em muitos casos, mesmo a música
e a história foram removidas da lista. E, apesar dessas lacunas, ainda
esperamos dos artistas que descrevam o mundo todo. Mas não se pode descrever
aquilo que se escolhe não conhecer. E essa é, infelizmente, a escolha que temos
feito em relação à arte e à ciência há centenas de anos.
Até muito recentemente, avanços tecnológicos pareciam
vir sempre acompanhados por grande fragmentação do conhecimento em temas
artificialmente concisos e categorias especializadas.
Só agora os estudiosos das humanidades reconhecem que a
separação entre arte e ciência é artificial e foi perpetuada por séculos de
história que fizeram da metafísica o fundamento de tudo que é artístico. O
mecanismo dessa artificialidade histórica e as suas categorias remontam ao
romantismo do século 18, um artefato do "contrailuminismo" que
terminou por se tornar uma realidade de fato.
Os tempos mudaram de maneiras que Vitrúvio não poderia
previsto. Na maioria dos contextos culturais atuais, o pensamento e a prática artística
foram relegados às margens da sociedade como frívolos, triviais e ornamentais.
A arte é vista mais como forma de decorar do que de inovar.
Os estudantes de arte de nossa era, em geral, nem supõem
que a separação entre arte e ciência foi construída e que, no passado, artistas
contribuíram para a invenção da matemática, da astronomia, da química, da
física e da biologia. A ideia de que grandes avanços na arte e na ciência podem
ser parte de uma mesma empreitada se tornou difícil de aceitar.
Ao mesmo tempo, sobrevive a impressão de que os artistas
têm a capacidade única de reunir ideias de todos os quadrantes a fim de
representar nossos sonhos e nossas aspirações. Ainda se espera que a arte
invoque o espírito humano e interprete o mundo para nós.
Não é nenhum segredo que, no mundo moderno, a maior
parte dos artistas estão desempregados. E seria um erro grave partir dos
insulares e privilegiados mercados de arte de, digamos, Nova York e Londres
para calcular o potencial de impacto das artes na sociedade em geral. Da mesma
forma que as operações áridas e empíricas da pesquisa científica nos fizeram
crer, tantas vezes, que elas não poderiam ser poeticamente ou esteticamente
relevantes.
Artistas ainda precisam de conhecimento amplo. Eles não
devem se confinar totalmente na ciência, mas a prerrogativa do romantismo de
ignorar todas as regras além de suas próprias se tornou igualmente
insustentável.
EDUCAÇÃO
Muitos pré-requisitos já estão no lugar. Descobertas na
física e na biologia expandiram exponencialmente a paisagem em que a humanidade
projeta suas atividades. Disseminações de conhecimento de tirar o fôlego estão
em curso, com potencial de acelerar o desenvolvimento intelectual, social,
científico e tecnológico mundial. Temos o aparelho cognitivo e os meios
tecnológicos; o que falta?
A nossa cultura precisa ser capaz de sustentar um
Renascimento. Hoje, como no "quattrocento" italiano, as estruturas
sociais e institucionais não conseguem lidar com mudanças tão abrangentes. Em
muitos casos, comunidades religiosas poderosas e forças políticas conservadoras
controlam ou bloqueiam completamente o acesso à educação e às ciências.
Em algumas das sociedades mais avançadas
tecnologicamente, a educação universal está disponível apenas em teoria para os
indivíduos de renda baixa ou moderada. Mesmo que eles sejam admitidos nas salas
de aula e laboratórios, é improvável que esses indivíduos sejam capazes de
arcar com o grande investimento que se tornará cada vez mais necessário para
quem deseje fazer uma universidade.
Tragicamente, nenhuma sociedade foi tão tecnologicamente
avançada como a atual, mas nunca houve tanta indiferença da pessoa média aos
desenvolvimentos tecnológicos e princípios científicos que tornam possível
alcançar alguma qualidade de vida. Se a era do romantismo viu as ciências
humanas se separarem das exatas, a era moderna praticamente eliminou toda
esperança de uma reunião entre ciência e arte.
Mas estão surgindo sinais de mudança. Nos últimos dez
anos, laboratórios científicos e campos de pesquisa vêm se tornando cada vez
mais interdisciplinares. Conferências e conclaves internacionais ecoam essas
mudanças, e novos programas universitários foram estabelecidos para coordenar
esses desenvolvimentos. Até agora, essas iniciativas não integraram formalmente
as ciências e as artes, mas essas disciplinas também começam a deixar
discretamente para trás sua separação histórica.
Mas, então, de que formação os artistas precisam para
fazer contribuições significativas para a sociedade? Se considerarmos que
Vitrúvio prescreveu seu currículo para os artistas no século 1º a.C., parece
óbvio inferir que ele sentiria necessidade de atualizar sua lista de
pré-requisitos.
Certamente, seriam incluídos o conhecimento de
computadores —bem como da mídia e da arte digital— e a retomada do estudo
filosófico da natureza com a ajuda de ferramentas de realidade virtual e
aumentada. O tratamento artístico do corpo humano, por exemplo, precisa levar
em conta um conhecimento mais amplo sobre fisiologia, medicina e genética.
Artistas também poderiam se envolver com as revoluções nas próteses, órgãos
artificiais e expansões cibernéticas do aparelho sensório humano.
A lista prosseguiria com tópicos como astrobiologia,
ciências climáticas e ambientais, holografia e robótica —apenas para mencionar
alguns poucos exemplos. Em quais áreas da ciência e da tecnologia há maior
necessidade de exploração criativa? Em todas elas.
Muitos artistas dirão: "Não conseguimos entender
isso!", "Não temos como fazer isso!". Mas Vitrúvio provavelmente
responderia que sim, podemos e devemos fazê-lo.
Joe Davis -
artista-cientista, é pesquisador do Instituto de Tecnologia de Massachusetts
(EUA)..
Tradução de Paulo Migliacci