Mudam os músculos, ficam as ações.
O
cérebro transforma ações abstratas em movimentos específicos.
De braços e mãos carregadas, apontar para um objeto de interesse
para chamar a atenção de alguém é temerário.
Mas não há problema: na ausência
das mãos, estendemos sem pensar duas vezes um cotovelo, um pé, ou mesmo o
queixo na direção desejada para mostrar "ali, ó".
A ação abstrata é a mesma, designada com a mesma palavra
–apontar–, mas a ação objetiva é completamente diferente, dependendo da parte
do corpo empregada, envolvendo músculos diferentes, membros de dimensões e
pesos vários.
Para um robô cujas ações são codificadas uma a uma, a
equivalência de movimentos não é nada trivial. Por que, então, ela parece tão
simples para o cérebro?
O advento da ressonância magnética, que permite detectar locais
no cérebro cuja atividade muda conforme ações são planejadas e executadas,
mostrou anos atrás que existe uma hierarquia de estruturas no córtex, desde as
que implementam movimentos pontualmente (onde neurônios diferentes controlam
diretamente músculos diferentes, fazendo-os contrair) até as que representam
ações abstratas, como "alcançar", "pegar", "levar à
boca".
A chave para a equivalência entre "alcançar com a mão"
e "alcançar com o pé" parece estar em uma região intermediária, cujos
neurônios representam pela primeira vez combinações de ações e suas
consequências sensoriais.
Ativar esses neurônios causa não simples contração de
um ou outro músculo, mas combinações que geram movimentos direcionados –mas
sempre de uma mesma parte do corpo, como mão direita ou pé esquerdo.
A equivalência abstrata, que torna "apontar" um verbo
que, para o cérebro, prescinde de objeto, surge mais adiante, no córtex
frontal, cujos neurônios representam em seus padrões de atividade o que
"apontar com a mão" e "apontar com o pé" têm em comum: a
parte sobre estender uma parte do corpo, ponto.
Os detalhes sobre qual parte
usar ficam a cargo daquelas outras regiões que cuidam dos detalhes, oras.
Um estudo transatlântico, envolvendo equipes nos EUA, Bélgica e
Itália, mostrou recentemente que esse esquema de transformação entre ações
específicas e abstratas funciona também em pessoas nascidas sem braços ou mãos,
e que aprenderam a usar os pés para o que os outros chamariam de manipular o
mundo.
No cérebro dos displásicos, todas as ações à distância são executadas
por neurônios que controlam pernas e pés –mas "apontar" ou
"pegar" são ordens representadas pelas mesmas regiões frontais de
quem nasceu com mãos.
É improvável que a equivalência
já nasça escrita nos genes; como tantas outras coisas em matéria de cérebro,
abstrações são provavelmente construídas aos poucos, conforme o uso objetivo
das partes.
É um arranjo digno de atenção do pessoal da inteligência artificial
que espera que tudo já nasça pronto. Até os robôs precisam de uma chance para
aprender...
SUZANA HERCULANO-HOUZEL - Bióloga
e neurocientista da Universidade Vanderbilt (EUA)