Gentileza nos ajuda a conviver, mas pode esconder animosidades incontroláveis
Adoro receber flores. Se me convidam para um almoço e fazem questão de pagar a minha conta, não tenho nenhum problema em aceitar. Também adoro poder retribuir a gentileza, assim que tiver oportunidade. Podem abrir a porta do carro para mim, carregar as compras e deixar que eu passe antes, acho ótimo.
Gentilezas e educação são bem vindas, pois sem esse verniz, que nos obriga a dizer bom dia no elevador às 6h da manhã mesmo sem ter acordado ainda, nos mataríamos mais do que já nos matamos. Nossa convivência seria impossível sem esse esmalte de polidez, ao qual devemos prezar mesmo sabendo que ele serve para disfarçar nosso egoísmo estrutural.
Jane Cherubim, uma jovem que teve o rosto totalmente deformado pelo namorado, diz em seu depoimento à televisão: "Só deixo uma dica: não acreditem, mulheres, em quem lhes traga flores todo santo dia. Porque, no final, tudo cansa. Tem que ser real. Eram tudo flores e acabou nisso". Da cama do hospital, ela nos alerta que o excesso de gentileza pode esconder uma animosidade incontrolável.
O irmão de Jane dá uma dica importante em seu testemunho, quando diz que "a ansiedade [do namorado] de ter ela como objeto, alguma coisa do tipo assim, só para ele, já era um sinal". Uma das questões centrais da violência contra a mulher é a crença arraigada de que as mulheres são objetos a serem possuídos pelos homens, pois, historicamente, elas têm sido mesmo.
Cuidamos de nossas coisas com zelo, mas não esperamos que nossa propriedade nos diga não, afinal, objetos não têm querer. É nessa hora que o homem que vê a mulher como sua se enfurece e quer destruí-la. A presença de outros homens assistindo a cena potencializa essa fúria, pois é na comparação com outros homens que ele se sente diminuído em sua própria virilidade.
Os estupros coletivos também bebem dessa fonte, ainda que tenham outros elementos. É claro que para que isso aconteça é preciso que esse homem violento acredite que sua masculinidade se baseia no poder que ele tem sobre os outros e, principalmente, sobre aqueles considerados vulneráveis e dependentes.
Um homem que tenha sua masculinidade pautada sobre outras identificações e valores que não esses não viverá o desencontro amoroso como perda identitária, mas com a dignidade de um adulto amadurecido, que considera a mulher um ser humano como ele. Sofrerá, mas não precisará fazer sofrer.
João Crisóstomo, pregador cristão do século 4º, comparava meninas virgens a móveis e vestuários. Dizia, justificando a prática de casá-las antes da primeira menstruação: "Somos feitos assim, já o disse, nós, os homens: por ciúme, por amor da vã glória, ou por qualquer outra razão, amamos sobretudo aquilo de que mais ninguém pode dispor e aproveitar antes de nós e de que somos os primeiros e únicos senhores". Frase que poderia sair da boca de qualquer um dos acusados de feminicídio, estupro ou espancamento de mulheres.
Existem também formas coletivas de expressão dessa lógica misógina, como a queima das "bruxas" na Idade Média e a internação das histéricas no fim do século 19, só para citar os mais célebres exemplos históricos.
Se não soubermos a mentalidade que subjaz à onda de violência contra mulher, que tem recrudescido recentemente, nunca seremos capazes de fazer frente a ela. Amo receber flores, mas se esse é o nível da discussão que se pretende levar para as escolas, elas chegarão tarde demais. Nos velórios.
Vera Iaconelli - diretora do Instituto Gerar, autora de “O Mal-estar na Maternidade”. É doutora em psicologia pela USP.
Fonte: coluna jornal FSP