Cerca de 52% dos brasileiros
com mais de 18 anos sofrem com o excesso de peso, taxa que 9 anos atrás era de
43%.
A comissária de bordo pede para afivelarmos os cintos e
desligarmos os celulares. O comandante avisa que a decolagem foi autorizada, a
aeronave ganha velocidade na pista e levanta voo.
Pela janela, São Paulo vira um paliteiro de prédios espetados um
ao lado do outro. Um pouco mais à frente, a periferia inchada, com ruas
tortuosas e casas sem reboque, abraça o centro da cidade como se fosse
esganá-lo.
Em poucos minutos, ouve-se um som agudo, sinal de que os
computadores podem ser ligados. Junto à porta de entrada, as comissárias se
levantam e preparam o carrinho de lanches.
De fileira em fileira, perguntam o que cada passageiro deseja beber.
No carrinho, acotovelam-se latas de refrigerantes, a garrafa de café e uma
infinidade de pacotes de sucos mais doces do que o sorriso da mulher amada. O
rapaz à minha direita prefere suco de manga; o da esquerda quer um de pêssego.
Agradeço, não quero nada. A moça estranha: "Nada, mesmo?".
Em seguida, ela nos estende a mão que oferece um objeto
ameaçador, embrulhado em papel branco. Em seu interior, um pão adocicado
cortado ao meio abriga uma fatia de queijo e outra retirada do peito de um peru
improvável.
No reflexo, encolho as pernas. Se, porventura, um embrulho
daqueles lhe escapa da mão e cai em meu pé, adeus carreira de maratonista.
Espremidos em assentos planejados para anões que venceram
campeonatos mundiais de baixa estatura, meus companheiros de infortúnio aceitam
o sanduíche emborrachado que jamais faria a travessia do esôfago, não fosse o
auxílio providencial de dois goles de líquido à cada porção mastigada.
O comandante informa que em Belo Horizonte o tempo é bom e que
nosso voo terá duração de 40 minutos. São dez e meia, é pouco provável que os
circunstantes tenham saído de casa em jejum.
O que os leva a devorar no meio da manhã 500 calorias
adicionais, com gosto de isopor? Qual é o sentido de servir comida em voos de
40 minutos?
Cerca de 52% dos brasileiros com mais de 18 anos sofrem com o
excesso de peso, taxa que nove anos atrás era de 43%. Já caíram na faixa da
obesidade 18% de nossos conterrâneos.
Os que visitam os Estados Unidos ficam chocados com o padrão e a
prevalência da obesidade. Lá, a dieta e a profusão de alimentos consumidos até
em elevadores conseguiram a proeza de engordar todo mundo; não escapam
japoneses, vietnamitas nem indianos.
As silhuetas de mulheres e homens com mais de 120 quilos pelas
ruas e shopping centers deixam claro que existe algo profundamente errado com
os hábitos alimentares do país.
Nossos números mostram que caminhamos na esteira deles.
Chegaremos lá, é questão de tempo; pouco tempo.
A possibilidade de ganharmos a vida sentados na frente do
computador, as comodidades da rotina diária e a oferta generosa de bebidas e
alimentos industrializados repletos de gorduras e açúcares que nos oferecem a
toda hora criaram uma combinação perversa que conspira para o acúmulo de
gordura no corpo.
Os que incorporaram as 500 calorias em excesso no caminho para
Belo Horizonte só o fizeram porque o lanche lhes foi servido. Milhões de anos
de evolução, num mundo com baixa disponibilidade de recursos, ensinaram o corpo
humano a comer a maior quantidade disponível a cada refeição, única forma de
sobreviver aos dias de jejum que fatalmente viriam.
Engendrado em tempos de miséria, o cérebro humano está mal
adaptado à fartura. A saciedade à mesa só se instala depois de ingerirmos muito
mais calorias do que as necessárias para cobrir os gastos daquele dia. A
seleção natural nos ensinou a não desperdiçá-las, o excesso será armazenado sob
a forma de gordura.
O tecido gorduroso não é um reservatório inerte, produz hormônios,
libera mediadores químicos que interferem com o metabolismo e o equilíbrio
entre fome e saciedade. E, o mais grave, dá origem a um processo inflamatório
crônico que aumenta o risco de doenças cardiovasculares, diabetes, vários tipos
de câncer e de outros males que infernizam e encurtam a vida moderna.
Por essas e outras razões, caríssimo leitor, é preciso olhar
para a comida como fazemos com a bebida: é bom, mas em excesso faz mal.
Dráuzio
Varella - médico oncologista e escritor brasileiro,
conhecido por popularizar a medicina em seu país, através de programas de rádio
e TV.
Fonte:
coluna no jornal FSP