Roubo digital histórico traz mais perguntas que
respostas
Prisão de um
suspeito do ataque hacker é explicação insuficiente
O país acabou de sofrer o maior ataque digital da história. Perto de R$
1 bilhão foi desviado.
A ação atingiu o coração do SPB (Sistema de Pagamentos
Brasileiro), que são as contas reserva que as instituições financeiras mantêm
diretamente junto ao Banco Central.
Quando transferimos dinheiro para alguém, nossa
conta bancária é uma abstração. As transferências de fato são feitas
entre instituições financeiras, usando as contas
reserva.
Apura-se quanto cada uma recebeu ou dela saiu, faz-se a compensação e
os valores são então efetivamente transferidos. Foram contas como essas que o
bandido atacou.
Na semana passada a Polícia Federal prendeu um suspeito de participar do ataque.
Trata-se de um funcionário administrativo da empresa C&M, que presta
serviços para bancos pequenos e médios.
A empresa é credenciada justamente para
intermediar o acesso deles com o Banco Central, permitindo que operem o Pix e TEDs por meio de suas contas reserva.
O funcionário teria recebido R$ 15 mil para
fornecer sua credencial de acesso para os bandidos (tal como login e senha).
De
posse da credencial, os bandidos entraram no sistema da C&M e acessaram as
contas reserva mantidas no Bacen por clientes da empresa. Tudo resolvido e
situação explicada, certo?
Nada disso. Essa explicação é insuficiente. Ela
levanta mais perguntas do que respostas. E pior. Se for verdadeira, é um sinal
de alerta de que algo vai muito mal.
A primeira questão é: como um funcionário
administrativo tem uma credencial que permite movimentar centenas de milhões de
reais? Isso em si já é uma falha grave.
A segunda pergunta é se a C&M não usava um
sistema de Multisig, que exige múltiplas assinaturas de pessoas diferentes para
que transações dessa magnitude sejam completadas. Essa é uma prática básica
para esse tipo de operação.
Outra questão é quantos fatores de autenticação
eram necessários para acessar essa credencial. Dois, três, quatro? Ela exigia
biometria, impedindo que fosse transferida a outra pessoa? A credencial era
criptografada, ou possuía um item de hardware para certificar o acesso?
Tudo
isso são itens elementares, primários até, de cibersegurança que deveriam estar
presentes.
E a pergunta mais relevante: por que o sistema não
alertou e bloqueou essas ações totalmente fora do padrão, realizadas inclusive
durante a madrugada?
Caro leitor, experimente acordar às 4 da manhã e enviar um
Pix de R$ 5 mil da sua conta. O sistema do seu banco provavelmente irá impedir
que isso aconteça. Como o sistema interbancário não percebeu a movimentação
anômala, e a congelou na raiz?
Que tipo de auditoria e padrões de segurança o
Bacen aplica para empresas como a C&M e outras integrantes do SPB?
Ironicamente, foi uma startup de criptomoedas que deu o alarme.
O bandido tentou transferir R$ 6 milhões para ela de madrugada. A empresa
detectou a anomalia, bloqueou os fundos e começou a avisar as instituições
financeiras.
Tudo isso mostra que cibersegurança é um assunto
negligenciado no Brasil. Não dá mais para ser assim.
RONALDO LEMOS - advogado, diretor do Instituto de Tecnologia
e Sociedade do Rio de Janeiro