A partir de DNA ancestral, cientista reescreve Pré-História


O Centro de Geogenética, fundado por Eske Willerslev em Copenhague, hoje emprega mais de cem cientistas.   

 

Eske Willerslev, geneticista dinamarquês que foi um dos pioneiros do estudo do DNA ancestral, continua a liderar esforços para reconstruir os últimos 50 mil anos de história humana.

No entanto, essa missão às vezes entra em terreno culturalmente delicado.

Em 2010, por exemplo, quando tentou publicar suas descobertas sobre um antigo tufo de cabelo de um aborígene australiano, Willerslev tomou conhecimento da história antiética das pesquisas étnicas na Austrália.

Era comum que anatomistas da era vitoriana saqueassem cemitérios aborígines, levando ossadas para museus. Anos de abusos desse tipo deixaram muitos indígenas ressabiados em relação a cientistas.

Hoje, geneticistas que quiserem estudar o DNA aborígine precisam obter autorização não somente de doadores de material genético, mas também de organizações comunitárias. Além disso, em muitos casos, há limites ao compartilhamento de resultados científicos.

“Hoje entendo por que eles tiveram ceticismo e resistência”, disse Willerslev. “Olhando em retrospecto, eu deveria ter procurado os aborígines antes de empreender o estudo. O simples fato de algo ser legalmente permitido não faz com seja eticamente correto.”

Evidências arqueológicas mostram que os humanos chegaram à Austrália há pelo menos 50 mil anos. Os cientistas sempre quiseram saber se os aborígines que hoje vivem no continente são descendentes daqueles primeiros habitantes (e não de outros que podem ter chegado posteriormente). As descobertas de Willerslev indicam que sim. Ele e seus colegas publicaram o primeiro genoma de um australiano aborígine.

Willerslev contou que, uma vez, mostrou orgulhosamente a visitantes indígenas americanos uma coleção de crânios dinamarqueses antigos em seu laboratório. No entanto, eles ficaram chocados.“Como você pode tratar seus ancestrais desse modo, como tanta falta de respeito?”, perguntaram.

Seus convidados o ajudaram a perceber que ele, por ser europeu, encara a história de uma maneira muito diferente. Graças a isso e às suas experiências com a Austrália, ele mudou o modo como estuda o DNA de povos indígenas. “Eu evoluí”, diz Willerslev.

Como diretor do Centro de Geogenética da Universidade de Copenhague, Willerslev, 44, enriqueceu nossos conhecimentos sobre a pré-história, lançando luz sobre o desenvolvimento humano com evidências que não podem ser encontradas em fragmentos de cerâmica ou estudos de sociedades vivas.

Foi Willerslev quem comandou o primeiro sequenciamento bem-sucedido de genoma humano ancestral, o de um groenlandês pré-histórico.

Ele e seus colegas extraíram DNA de um tufo de cabelo de 4.000 anos atrás encontrado na década de 1980. Eles utilizaram métodos novos e poderosos para reconstruir o genoma do groenlandês. Foi a primeira vez que cientistas tinham recuperado um genoma humano antigo inteiro.

Descobriu-se que o cabelo tinha sido de um homem. Seu tipo sanguíneo era A positivo, e ele tinha pré-disposição genética à calvície. No entanto, o mais interessante de tudo foi que seus genes continham pistas sobre a história da Groenlândia e dos inuítes que ali vivem hoje.

“Pudemos ver que esses caras não eram os antepassados diretos dos inuítes”, disse Willerslev. Em vez disso, o groenlandês pré-histórico pertencia a um grupo diferente conhecido como paleoesquimós.

Analisando o genoma antigo, Willerslev e seus colegas concluíram que os paleoesquimós migraram da Sibéria há cerca de 5.500 anos e viveram no Canadá e na Groenlândia por séculos, até desaparecer. Os paleoesquimós não foram os ancestrais dos inuítes atuais — foram substituídos pelos inuítes.

Foi também a pesquisa de Willerslev que revelou uma ligação inesperada entre europeus e indígenas americanos.

Muitas evidências indicam que os indígenas americanos se originaram de uma população em algum lugar da Ásia, mais de 15 mil anos atrás. Em busca de pistas sobre essa população fundadora, o centro de Willerslev examinou um osso de 24 mil anos, de um menino, enterrado perto de um povoado do leste da Sibéria chamado Mal’ta.

Maanasa Raghavan, pesquisadora do centro de genética, descobriu DNA nos restos. Mas os genes pareciam pertencer a um europeu do norte, não a um asiático oriental.“Suspendi a pesquisa porque achei que o material estivesse totalmente contaminado”, disse Willerslev.

Depois que ele e seus colegas desenvolveram métodos mais poderosos para analisar DNA, Raghavan e a equipe dela voltaram a se debruçar sobre o DNA de Mal’ta. O material não estava contaminado; em vez disso, era um genoma diferente de tudo o que eles esperavam.

Partes do genoma se assemelhavam muito ao DNA de europeus antigos, mas uma parte maior tinha semelhanças com o DNA de indígenas americanos.“Foi surpreendente”, disse Willerslev. “Esse indivíduo não tem nada a ver com asiáticos orientais. Ele tem algo a ver com europeus e indígenas americanos.”

Parece que o menino de Mal’ta pertenceu a uma população antiga que 24 mil anos atrás estava espalhada pela Ásia. Em algum momento, seus membros entraram em contato com uma população asiática oriental, e membros dos dois grupos tiveram filhos juntos. Os indígenas americanos são descendentes desses filhos.

O povo de Mal’ta não tem parentesco com os asiáticos que vivem na região hoje. No entanto, antes de desaparecer, ele também transmitiu seu DNA a europeus. Pesquisas posteriores revelaram a trajetória seguida por esses genes da Ásia à Europa.

Willerslev e seus colegas também encontraram DNA semelhante ao de Mal’ta em nômades da Idade do Bronze, conhecidos como os Yamnaya, que viveram entre 4.300 e 5.500 anos atrás na região que hoje é o sudoeste da Rússia. Cerca de 5.000 anos atrás, os Yamnaya chegaram à Europa, onde acrescentaram seu DNA ao pool genético.

Willerslev abandonou sua ideia anterior de que grandes grupos de pessoas em diferentes partes do mundo tiveram histórias genéticas em grande medida distintas. “Os resultados deixaram claro que essa imagem simplificada não é a verdade.”

Carl Zimmer - escritor de ciência, cientista e blogueiro norte-americano, que se dedica ao estudo da evolução e de parasitas.

Fonte: jornal New York Times

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