05/08/2017 02h00
A Justiça brasileira faz questão de mostrar que é
desigual.
Já vivi o suficiente para aprender que a igualdade
entre seres humanos só é atingida depois da morte, em qualquer parte do mundo.
Nos países desenvolvidos, no entanto, existe preocupação do aparato judiciário
em aplicar as leis com mais rigor e punir os que as infringem, de modo a
transmitir a todos os cidadãos a sensação de que condições sociais
privilegiadas não lhes garante a impunidade.
No Brasil, o emaranhado de leis, jurisprudências e
recursos cabíveis à aplicação delas asseguram aos bons escritórios de
advocacia, a possibilidade de manter criminosos longe das grades por muitos
anos –ou para sempre.
Por despreparo técnico, não vou discutir as
incoerências de nosso Código Penal antiquado. Nem pretendo falar do péssimo
exemplo dado à população por servidores públicos ladrões, corrompidos por uma
elite empresarial de marginais sem escrúpulos, que lhes dão gorjetas em troca
de contratos bilionários, superfaturados. Vou me ater a um universo mais
familiar: o das prisões.
No domingo passado, o "Fantástico"
apresentou o caso de um traficante preso com 120 kg de maconha. As imagens
iniciais mostravam os pacotes com a droga e uma centena de balas enormes, que
imagino serem de fuzil.
Em seguida, aparecia a mãe do rapaz (por acaso, uma
desembargadora) indo buscar o filho na porta da cadeia, com o alvará de soltura
que havia sido expedido por um colega de trabalho.
A justificativa dada ao repórter pelo desembargador
e pelo advogado de defesa foi a mesma: o réu seria transferido para uma clínica
por ser portador de uma enfermidade denominada transtorno borderline, patologia
de diagnóstico incerto, fonte de discussões e desacordos entre os psiquiatras.
No dia seguinte dei uma aula sobre saúde para cerca
de 200 mulheres presas na Penitenciária Feminina da Capital, em Santana, na
zona norte.
No final, quando me coloquei à disposição para as
perguntas, uma senhora que aparentava 50 anos ficou em pé:
– Fui presa em flagrante na portaria de uma cadeia,
em Guarulhos, levando para o meu marido 55 gramas de cocaína. Eu sofro de
depressão crônica, me trato no Hospital das Clínicas, tomo remédio tarja preta
e já tentei me matar duas vezes. E o filho dessa desembargadora? Cento e vinte
quilos, fora as balas, doutor!
Em meu lugar, o que você responderia, leitor?
Já abordei nesta coluna o caso dessas mulheres que
levam droga para o interior das cadeias. Algumas são traficantes profissionais,
mas outras não o fazem por dinheiro; acondicionam cocaína e maconha em
invólucros impermeáveis, introduzidos na vagina para atender a solicitações de
maridos, namorados e familiares que as chantageiam com súplicas de ajuda, para
não morrer nas mãos de assassinos impiedosos.
Eventualmente surpreendidas pelas encarregadas de
revistá-las, são encaminhadas para lavrar o flagrante na delegacia mais
próxima, de onde serão transferidas para a penitenciária à espera do
julgamento.
Essas mulheres costumam ter vários filhos. Na
penitenciária, já atendi uma avó aos 28 anos e uma mulher de 40 que tem dois
bisnetos, "por enquanto", conforme assegura. Ao ir para a delegacia,
a mãe deixa em casa três ou quatro crianças na agonia da espera, até que um
parente ou vizinho apareça para levá-los.
Como é muito pequena a probabilidade de que uma
pessoa possa cuidar de tantas crianças, uma vai para a casa de um vizinho,
outra para a da avó, outra vai morar com a tia no interior. Na falta de
acolhimento, ficarão sob a guarda do Conselho Tutelar.
Qual será o futuro dos filhos? O que a sociedade
ganha com essas prisões? Que impacto tem na economia do tráfico a quantidade de
droga que cabe numa vagina?
Você não pode imaginar, caro leitor, a revolta das
mulheres na penitenciária, quando foi libertada a mulher do ex-governador do
Rio de Janeiro, com a justificativa de ser mãe de um menino de 14 e outro de 12
anos carentes de cuidados maternos.
Como explicar que elas não têm direito à lei da
qual se valeu essa senhora, cujo marido roubou muitos milhões a mais do que a
somatória de todos os furtos e assaltos praticados pelas 2.200 prisioneiras da
cadeia?
Drauzio Varella - Médico cancerologista,
dirigiu o serviço de Imunologia do Hospital do Câncer.
Fonte: coluna jornal FSP