Os burros de ouro contra a boa neurociência
Quem
atenta contra as próprias convicções a troco de uma recompensa mesquinha tem
mais chances de se desfazer de princípios.
Felipe 2º, rei da Macedônia, teria dito: "não há
fortaleza que resista a um burro carregado de ouro".
Seu filho, Alexandre
Magno, demonstrou ter compreendido a lição, muitas vezes, para conquistar
territórios, preferiu corromper rivais às batalhas.
Corrupção sempre foi uma arma de persuasão.
Mas há opções mais em conta. Durante a Guerra da Coreia, militares chineses utilizaram um método bem barato para converterem
prisioneiros estadunidenses ao comunismo maoísta.
Não foi necessário seduzir os capturados com a
promessa de que, em breve, viveriam em um lugar privilegiado no paraíso do fim
da história.
Os orientais ofereciam arroz ou doces aos cativos em troca de
um texto contra os Estados Unidos. O expediente foi frequentemente bem-sucedido, era a
lavagem cerebral por uma bagatela.
Quem atenta contra as suas próprias convicções, a troco de
uma recompensa mesquinha, tem maiores chances de se desfazer de seus
princípios.
Ao se vender por pouco, para escapar de pesadas reflexões críticas, há a necessidade de se inventar uma
justificativa, e acreditar na invenção.
Os que se vendem caro nem tanto, o fim
justifica os meios, e isto basta.
As redes sociais são uma benção, têm
conteúdo útil ou simplesmente me levam a perder tempo, quando assim —ou não—
proponho-me.
As redes sociais são um demônio, veiculam propagandas enganosas invisíveis aos
reguladores do código de defesa do consumidor.
Em uma dessas, um homem se
apresenta como neurocientista e diz ter a solução para
demência, inclusive, reverter atrofias cerebrais.
Em seguida, ele revela aplicar o método a sua
própria mãe. O falastrão limita-se a demonstrar a saúde cognitiva da sorridente
senhora, aparentemente nonagenária, solicitando a ela um aceno às câmeras.
Se ao menos ela tivesse explicado como a
neurociência é complicada, demonstraria gozar do privilégio de envelhecer lúcida e crítica.
Mas isto não
seria consequência da charlatanice do filho. Ele não é um gênio, muito menos o
único do mundo capaz de regenerar cérebros humanos.
Em outro comercial, uma voz inicialmente em off,
explica que todos os males contra a saúde vêm de microrganismos ou de toxinas.
O clímax da peça se aproxima quando a voz
se personifica em uma mulher, mais outra pessoa que se intitula neurocientista.
O apogeu chega com o anúncio de uma nova versão do Emplasto Brás Cubas, mas
desta não na forma de um adesivo, mas de ondas sonoras que quando ouvidas,
fazem o cérebro clarear os agentes daninhos.
É sabido que as redes sociais operam algoritmos
para direcionar propaganda. Seus robôs souberam que certa vez, eu estava
procurando um sapato de couro cromo verde. Pois, após diferentes estratégias digitais de procura do tal
produto, passei a receber anúncios de calçados.
Era inteligência artificial
posta em prática para conquistar minhas economias.
Mas dos outros dois exemplos, o que sobressai é a
burrice artificial, para cima de mim, não. Jogos de sudoku, ou algo parecido,
não curam Alzheimer, leite de coco não trata doença de Parkinson, e muito menos barulhos
estranhos, mas triviais, irão varrer vírus para fora do corpo.
Quem está à
procura de soluções simplistas para problemas desafiadores, é presa para a
cilada.
A neurociência é uma palavra que designa uma disciplina
pujante.
Embutidos em seu significado há o complexo, o sofisticado e o
misterioso. Alguns, que não são nem "neuros", nem cientistas, tentam
usurpar estas características.
Utilizam-se do termo neurociência para unir um
problema a uma bizarra solução, como se fosse uma licença para eles escaparem
das provas e das explicações.
Donos de redes sociais vez ou outra se dizem empenhados em
eliminar as enganações que, na verdade, ajudam a difundir.
Talvez não resistam
aos burros carregados de ouro- e publicidade - que surgem aos montes em
seus portais.
E seus usuários se aprofundam em tolices, após
sorverem uma mesquinha porção de desinformação.
LUCIANO MAGALHÃES MELO - médico neurologista,
escreve sobre o cérebro, seus comandos, seus dilemas e as doenças que o afetam.