É uma situação comum. A criança dá trabalho, questiona muito,
viaja nas suas fantasias, se desliga da realidade. Os pais se incomodam e levam
ao médico, um psiquiatra talvez. Ele não hesita: o diagnóstico é déficit
de atenção (ou Transtorno de Deficit de Atenção e Hiperatividade – TDAH) e
indica ritalina para a criança.
O medicamento é uma bomba. Da família das anfetaminas, a
ritalina, ou metilfenidato, tem o mesmo mecanismo de qualquer estimulante,
inclusive a cocaína, aumentando a concentração de dopamina nas sinapses. A
criança “sossega”: pára de viajar, de questionar e tem o comportamento zombie
like, como a própria medicina define. Ou seja, vira zumbi — um robozinho
sem emoções. É um alívio para os pais, claro, e também para os médicos. Por
esse motivo a droga tem sido indicada indiscriminadamente nos consultórios da
vida. A ponto de o Brasil ser o segundo país que mais consome ritalina no
mundo, só perdendo para os EUA.
A situação é tão grave que inspirou a pediatra Maria Aparecida
Affonso Moysés, professora titular do Departamento de Pediatria da Faculdade de
Ciências Médicas (FCM) da Unicamp, a fazer uma declaração bombástica: “A gente
corre o risco de fazer um genocídio do futuro”, disse ela em entrevista
ao Portal Unicamp. “Quem está sendo medicado são as crianças
questionadoras, que não se submetem facilmente às regras, e aquelas que sonham,
têm fantasias, utopias e que ‘viajam’. Com isso, o que está se abortando? São
os questionamentos e as utopias. Só vivemos hoje num mundo diferente de
mil anos atrás porque muita gente questionou, sonhou e lutou por um mundo
diferente e pelas utopias. Estamos dificultando, senão impedindo, a construção
de futuros diferentes e mundos diferentes. E isso é terrível”, diz ela.
O fato, no entanto, é que o uso da ritalina reflete muito mais
um problema cultural e social do que médico. A vida contemporânea, que envolve
pais e mães num turbilhão de exigências profissionais, sociais e financeiras,
não deixa espaço para a livre manifestação das crianças. Elas viram um problema
até que cresçam. É preciso colocá-las na escola logo no primeiro ano de vida,
preencher seus horários com “atividades”, diminuir ao máximo o tempo ocioso, e
compensar de alguma forma a lacuna provocada pela ausência de espaços sociais e
públicos. Já não há mais a rua para a criança conviver e exercer sua “criancice.
E se nada disso funcionar, a solução é enfiar ritalina goela
abaixo. “Isso não quer dizer que a família seja culpada. É preciso orientá-la a
lidar com essa criança. Fala-se muito que, se a criança não for tratada, vai se
tornar uma dependente química ou delinquente. Nenhum dado permite dizer isso.
Então não tem comprovação de que funciona. Ao contrário: não funciona. E o que
está acontecendo é que o diagnóstico de TDAH está sendo feito em uma
porcentagem muito grande de crianças, de forma indiscriminada”, diz a médica.
Mas os problemas não param por aí. A ritalina foi retirada do
mercado recentemente, num movimento de especulação comum, normalmente atribuído
ao interesse por aumentar o preço da medicação. E como é uma droga química que
provoca dependência, as consequências foram dramáticas. “As famílias ficaram
muito preocupadas e entraram em pânico, com medo de que os filhos ficassem sem
esse fornecimento”, diz a médica. “Se a criança já desenvolveu dependência
química, ela pode enfrentar a crise de abstinência. Também pode apresentar
surtos de insônia, sonolência, piora na atenção e na cognição, surtos
psicóticos, alucinações e correm o risco de cometer até o suicídio. São dados
registrados no Food and Drug Administration (FDA)”.
Enquanto isso, a ritalina também entra no mercado dos jovens e
das baladas. A medicação inibe o apetite e, portanto, promove emagrecimento.
Além disso, oferece o efeito “estou podendo” — ou seja, dá a sensação de
raciocínio rápido, capacidade de fazer várias atividades ao mesmo tempo, muito
animação e estímulo sexual — ou, pelo menos, a impressão disso. “Não há ressaca
ou qualquer efeito no dia seguinte e nem é preciso beber para ficar loucaça”,
diz uma usuária da droga nas suas incursões noturnas às baladas de São Paulo.
“Eu tomo logo umas duas e saio causando, beijando todo mundo, dançando o tempo
todo, curtindo mesmo”, diz ela.
Roberto Amado - jornalista com atuação na imprensa paulistana, escritor e
romancista indicado ao Prêmio Jabuti, tem o blog Poucas Palavras.