É
notável que três ou quatro gerações possam se reunir para partilhar a comida e
trocar experiências.
Ah, o fim do ano: época de passar os últimos tempos em
retrospectiva, reativar esperanças de que algo magicamente mude, evitar
assuntos espinhosos ao redor da mesa do jantar, encontrar algo pelo qual ser
grato —porque afinal, está comprovado que cultivar pensamentos de gratidão são
um grande caminho para a felicidade— e comer, comer, comer.
Então segue minha retrospectiva esperançosa que envolve
comilança, família e conversa ao redor da mesa que consolida feitos anteriores
e potencializa o futuro de todos, e que acabo de publicar na revista Progress
in Brain Research. Afinal, há mais de um milhão de anos que temos feito
sistematicamente tudo isso, apenas sem dar aos nossos hábitos a devida atenção
—e gratidão.
Em minha retrospectiva, a engenhosidade de alguns
primatas já bastante cabeçudos e bípedes lhes colocou nas mãos pedras formadas
em ferramentas, que permitiram as formas mais rudimentares de preparação de
alimentos, que aumentaram enormemente o rendimento calórico de plantas e
animais de outra forma devorados apenas com os dentes e reduziram o tempo
passado em busca de alimento, o que abriu buracos na agenda para fazer coisas
mais pacíficas e sociáveis e de quebra permitiu que aqueles bebês nascidos especialmente
cabeçudos agora fossem viáveis.
Com o tempo (e bota tempo nisso), essa espécie, e só
ela, detentora do Rito da Transformação Alimentar, foi ficando mais cabeçuda e
levando cada vez mais tempo para amadurecer, e também vivendo cada vez mais.
Quando jovens de dez anos ainda se mantinham crianças, e adultos de 40 ainda
eram viáveis, surgiram os avós. Mais tempo, neurônios e calorias adiante,
quando jovens de 15 anos ainda eram crianças e adultos de 60 se tornaram
comuns, surgiram os bisavós.
E assim, ao redor de refeições compartilhadas que
envolvem preparação cada vez mais elaborada e que congregam à mesa as gerações
que já fizeram e as novas que aprendem a fazer, facilitam conversas e trocas de
experiências, permitem transmissão cultural para as novas gerações —e inclusive
transmissão de tecnologias para as gerações anteriores, promovendo integração
de toda aquela pequena sociedade ao redor da mesa. Tornamo-nos humanos
modernos.
Nossa humanidade e modernidade são tão bem estabelecidas
que nos damos ao luxo de perder de vista quão notável é, para qualquer espécie
animal, três ou quatro gerações terem oportunidades regulares de se reunir para
compartilhar alimentos e experiências, histórias de sucesso e mancadas
fenomenais, anunciar uma nova maneira de fazer isto ou aquilo. Enquanto humanos
ainda se dispuserem a sentar juntos e celebrar nossas diferenças, há esperança.
Suzana Herculano-Houzel - bióloga e neurocientista da Universidade Vanderbilt
(EUA).
Fonte: coluna jornal FSP