Inteligência artificial traduz
textos de 5.000 anos
Tarefa ao alcance de poucos muda totalmente com novo algoritmo.
Matéria divulgada na imprensa
internacional no início deste mês noticia que pesquisadores de Israel e da
Alemanha desenvolveram um algoritmo de inteligência artificial capaz de traduzir para
o inglês os textos em escrita cuneiforme das antigas civilizações da
Mesopotâmia, remontando a mais de 5.000 anos atrás.
Ao contrário do Egito, cujas
monumentais realizações na pedra permaneceram visíveis ao longo da história, a
Mesopotâmia caiu em um vazio de esquecimento que se estendeu por milênios.
Até
que a curiosidade dos viajantes fosse irresistivelmente atraída para as
estranhas marcas em forma de cunha ("cuneiformes") visíveis em
inúmeras tabuletas de argila encontradas na região.
Ao início do século 18, já não
restavam dúvidas de que se tratava de uma escrita, e o respectivo idioma havia
sido associado à família das línguas semitas, que inclui o árabe e o hebreu
entre seus representantes vivos.
Nascia uma nova disciplina
científica, denominada assiriologia porque a maioria dos textos disponíveis à
época provinha do império assírio.
Pouco depois, nos anos
1820, Jean-François Champollion (1790–1832) decifraria
a Pedra de Roseta, dando origem à disciplina
irmã da egiptologia.
Mas a Assíria foi apenas a
última grande civilização a utilizar a escrita cuneiforme: escavações
sucessivas trouxeram à luz textos cada vez mais antigos, da Babilônia e da
Acádia, que utilizavam outras línguas semitas, aparentadas ao assírio.
E um fascinante trabalho de
dedução levou os pesquisadores a intuir, e posteriormente confirmar, a
existência de uma civilização ainda mais antiga, a Suméria, à época totalmente
esquecida, que se acredita hoje ter sido a primeira, e talvez a única, a
descobrir a escrita de forma independente, por volta de 3.500 a.C.
Todas utilizaram a técnica da
escrita cuneiforme, que consistia em gravar os caracteres por meio de um
estilete feito de cana em tabuletas de argila úmida, que depois eram secas ao
sol ou mesmo cozidas no forno, se a importância do documento justificasse esse
cuidado.
Muito mais duráveis do que os
papiros egípcios, as tabuletas de argila chegaram até nós em grande número:
estima-se que haja mais de um milhão na posse dos museus em todo o mundo,
outras tantas janelas para a nossa história mais remota.
Mas, embora tenhamos decifrado
todas essas línguas, ler esses documentos, em escritas complicadas e muitas
vezes danificados, ainda era tarefa ao alcance de poucos especialistas
treinados. Isso muda totalmente com a chegada do novo algoritmo.
Escavações arqueológicas na Mesopotâmia
trouxeram à luz centenas de milhares de textos em escrita cuneiforme.
Muitos são de interesse
apenas para especialistas: registros de impostos, listas de mercadorias,
correspondência diplomática etc.
Mas muitos outros tratam do dia a dia das
pessoas comuns: fascinantes, eles nos revelam a humanidade na alvorada da
história, com anseios e preocupações surpreendentemente atuais.
Entre os textos escavados na
Suméria (sul do Iraque atual), onde a escrita foi
inventada, estão o primeiro relato de delinquência juvenil, a primeira canção
de amor, a primeira versão escrita do dilúvio universal, a primeira receita de
cerveja, as primeiras fábulas com animais, o primeiro uso da palavra
"humanidade" (namlulu, em sumério).
O meu favorito, que deve ter sido
um "best-seller" na Suméria, pois foram encontradas mais de 20
cópias, fala da vida de um estudante por volta de 2.500 a.C..
O sistema educacional era
privado, acessível apenas a quem podia pagar.
Cada escola era dirigida por um
professor com o auxílio de um assistente, que caligrafava textos para os alunos
copiarem. Também havia profissionais especializados: o "encarregado de
desenho", o "encarregado de sumério", e até o "encarregado
de chicote"!
O currículo era centrado na
leitura e na escrita, mas também incluía línguas estrangeiras e matemática, claro. Inicialmente, o objetivo
era apenas profissional: formar escribas para a administração do templo e do
palácio.
Mas ao longo do tempo essas escolas evoluíram para se tornarem centros
de produção de conhecimento e de criação literária.
Mal pagos (algumas coisas não
mudaram muito em milênios), professores e assistentes viviam famintos e
mal-humorados, e descontavam na pedagogia do chicote.
O herói do nosso relato
suplica a seu pai: "convida o professor a comer na nossa casa, senta-o no
lugar de honra à mesa, dá-lhe um bom jantar com vinho, e veste-o com uma túnica
nova, pois eu não aguento mais apanhar".
Feliz com a refeição e os
presentes, o mestre aprova o estudante: "Jovem, já que atentaste para meus
ensinamentos, estou certo de que terás carreira brilhante, serás exemplo para
teus colegas e braço direito de teus chefes".
É o primeiro registro de suborno
na história. E no contexto escolar!
Ler línguas antigas em
cuneiforme é tarefa difícil, reservada a poucos especialistas. Por isso, apenas
uma pequena fração dos textos da Mesopotâmia foi lida até hoje.
Mas um algoritmo de tradução criado no início do ano vai colocar
joias como esta ao alcance de todos. Falarei sobre essa inteligência
artificial na semana que vem.
MARCELO VIANA - diretor-geral do Instituto de Matemática Pura e Aplicada,
ganhador do Prêmio Louis D., do Institut de France.