No
dia em que fiz o “depósito” da minha tese, exultante por ter conseguido chegar
ao final de uma jornada de mais de três anos, caminhei orgulhoso até a
Biblioteca Central da Universidade de Illinois, onde era bolsista na seção de
América Latina, para contar a boa nova e mostrar o trabalho aos colegas. Uma
amiga querida, rigorosa e exigente, bibliotecária da Coleção Afro-americana,
que ficava ao lado, pegou a tese e folheou aquele catatau de quase 300 páginas
datilografadas. De repente, parou numa página qualquer, apontou uma palavra e,
olhando para mim, disse: “Essa palavra está errada. Como pode ‘depositar’ uma
tese com erro de inglês? A banca não vai aprovar”. Fiquei perplexo.
Lá se
vão 35 anos e nunca me esqueci disso. Continuamos amigos até o seu falecimento
precoce anos depois, mas nunca realmente compreendi como podia ter ignorado “o
conjunto da obra” e ter feito um julgamento seletivo, com base no erro de
grafia de uma única palavra, dentre milhares. Felizmente a previsão de minha
amiga não se confirmou e não tive problemas na banca.
A
matéria do UOL
Guardadas
as devidas proporções, foi esse insólito episódio pessoal que me veio à cabeça
quando me deparei com uma matéria, assinada por Aiuri Rebello, na capa do
portal UOL, dia 7 de maio, com o título: “Brasília inaugura seu único legado de
mobilidade para a Copa no escuro”.
Abaixo
do título uma fotografia noturna da região não residencial onde fica o complexo
viário que liga a Asa Sul ao aeroporto, ao Lago Sul, ao Park Way e à saída sul
do Plano Piloto, com a legenda: “Entrada e saída do túnel sob a rotatória do aeroporto
em Brasília foi inaugurada sem luz” (ver aqui).
Esclarecimentos
preliminares
Dois
esclarecimentos são necessários.
Primeiro:
estou convencido de que a matéria citada em nada vai alterar a avaliação dos
milhares de brasilienses beneficiados com a obra que acaba de ser inaugurada. A
mobilidade/trânsito da região independe do “enquadramento” dessa ou daquela
matéria publicada no UOL ou em qualquer outro veículo. Todavia, os eventuais
leitores(as) que vivem longe do Distrito Federal poderão, sim, formar uma
opinião distorcida da realidade. Aliás, para verificar isso, basta dar uma
olhada nos “comentários” que já foram postados no portal UOL.
Segundo:
não tenho qualquer tipo de relação com o Governo do Distrito Federal (GDF) e,
muito menos, pretendo defendê-lo. Ao contrário. Estou entre os milhares de
residentes de Brasília que se decepcionaram com as muitas promessas não
cumpridas. No meu caso, sobretudo aquelas relativas à instalação do Conselho de
Comunicação Social, previsto na Lei Orgânica do Distrito Federal, e à anunciada
transformação de Brasília na “capital do wi-fi”. Promessas nas quais
ingenuamente acreditei e sobre as quais escrevi neste Observatório em
fevereiro e março de 2011 (ver “Sopro de ar puro no DF“ e “Brasília, a capital wi-fi“) e, já sem qualquer
ilusão, novamente em março de 2012 [ver “Lições de um processo em andamento“].
Trata-se
aqui da incansável e sistemática pauta negativa que tem orientado a quase
totalidade da cobertura jornalística da grande mídia nos últimos meses e sobre
a qual também tenho escrito neste Observatório (ver, por exemplo, “O ‘vale de lágrimas’ é aqui“].
Área
“desnatada”
As
obras inauguradas fazem parte das ações de mobilidade urbana previstas para a
Copa, com recursos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e sob a
responsabilidade do Departamento de Estradas e Rodagem do Distrito Federal
(DER-DF). Com 700 metros de extensão, dos quais 300 metros de área coberta, o
túnel vai melhorar o fluxo de trânsito na região por onde trafegam cerca de 80
mil veículos e uma média de 160 mil condutores e passageiros, por dia. A via de
acesso foi ampliada, foram construídas duas vias marginais e houve também
reforma do “balão” do aeroporto. O GDF divulgou que o custo da obra foi de
cerca de R$ 54 milhões e a estimativa do DER é de que, com as mudanças na via,
haverá redução de 40 minutos no tempo de viagem entre o centro do Plano Piloto
e o aeroporto.
A
matéria do UOL, contudo, destaca os seguintes pontos:
1. “a
única [obra] de mobilidade urbana prevista em Brasília para sair a tempo da
Copa;
2.
“não há iluminação instalada em um raio de pelo menos 50 metros no entorno da
rotatória, o que dificulta a vida de motoristas e pedestres por ali”;
3.
“não há uma calçada ou qualquer ponto de travessia próximo para pedestres, como
faixa ou passarela”;
4.
“não há nenhuma sinalização viária ou placa de qualquer espécie, tanto na
rotatória quanto no túnel e suas imediações para indicar os caminhos certos aos
motoristas”; e
5. “em
agosto do ano passado, o UOL Esporte mostrou que centenas de árvores e plantas
nativas do Cerrado e tombadas pelo governo foram desnatadas (sic) durante a obra.”
[Observação:
no dicionário Aurélio, “desnatar” significa “tirar a nata a (o leite)”.]
Ser
“a única” obra de mobilidade urbana altera o valor intrínseco dela? Na verdade,
a obra inaugurada se integra a outras do Expresso DF Sul em fase de testes, no
mesmo espaço. Problemas de iluminação e de sinalização, na obra e em seu
entorno, sim, existem e, pelo que se vê, tenta-se resolvê-los após a
inauguração.
Por
outro lado, como sou usuário frequente do acesso do Plano Piloto ao aeroporto,
posso garantir que (1) não há fluxo de pedestres na região do túnel inaugurado
e (2) não havia como fazer obras no local sem a retirada de “árvores e plantas
nativas do Cerrado”. O GDF garante que as 67 árvores [e não “centenas”] da
espécie sibipiruna deslocadas para as obras do Expresso DF Sul foram
replantadas pela Novacap com sucesso e que foram ainda plantadas 400 mudas de
ipês (cores branca, roxa e amarela), 250 palmeiras e 47 flamboyants.
Que
jornalismo é esse?
Tenho
chamado essa prática de pauta negativa de “jornalismo do vale de lágrimas”.
Em
outra ocasião afirmei que “no enquadramento padrão do jornalismo praticado
entre nós, até mesmo as notícias eventualmente ‘boas’ são acompanhadas de
comentários irônicos e jocosos insinuando que alguma coisa deu ou dará errado,
mantendo-se o ‘clima geral’ de que estamos vivendo numa permanente e
irrecorrível sequência de sofrimento e purgação de pecados. (...) Por óbvio, o
‘vale de lágrimas’ não é a única característica do jornalismo brasileiro que
omite e/ou enfatiza seletivamente aquilo que atende mais ou menos aos seus
interesses, implícitos e/ou explícitos”.
Em
ano eleitoral, às vésperas da realização de um evento de repercussão global, o
que motivaria esse jornalismo que insiste em ignorar aspectos positivos e
salientar apenas os que considera “negativos”, verdadeiros ou imaginários?
Afinal,
há algum limite para a pauta negativa?
Deixo
a resposta com você, caro leitor(a).
Venício A. de Lima - jornalista e sociólogo,
professor titular de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado),
pesquisador do Centro de Estudos Republicanos Brasileiros (Cerbras) da UFMG e
organizador de Para Garantir o Direito à Comunicação – A lei argentina, o
relatório Leveson e o HGL da União Europeia, Perseu Abramo/Maurício
Grabois, 2014; entre outros livros
Fonte: site Observatório da Imprensa