Pesquisas não enxergam o Brasil da direita das
redes digitais
Institutos
precisam reconhecer derrota e investir em métodos computacionais e qualitativos.
Diferenças entre os números apontados nas pesquisas
e os votos apurados nas urnas no último domingo (2) evidenciam a existência de
um Brasil das redes digitais, liderado pela direita ideológica, que escapa à
bolha dos meios tradicionais.
Para sobreviver a essa nova realidade é preciso
superar a nostalgia e o foco no dia a dia para disputar o futuro.
Dois de outubro não foi só o dia do resultado do primeiro
turno das eleições. Foi também um dia de descrédito para os
principais institutos de pesquisa e de choque para quem formou suas
expectativas com relação ao resultado eleitoral por meio deles.
O fato é que a maioria dos institutos foi incapaz
de bater a chamada "fotografia" do momento.
Na véspera do dia do
pleito, não detectaram contingentes expressivos de votos
que elegeriam senadores, governadores e dariam contornos totalmente novos para
o segundo turno da eleição presidencial.
Os números das urnas mostraram que existe um Brasil
que não é medido por meios tradicionais. A campanha que importa vem sendo feita
em outros canais, fora do radar da bolha.
Nos dias seguintes à eleição, surgiram muitas tentativas de
explicação. Por exemplo, a de que o Censo do país está desatualizado.
Assim,
alguns de seus dados, ao serem usados como base para os institutos de pesquisa,
levariam a uma representação excessiva do segmento mais pobre da população,
gerando distorções.
Outra explicação seria que os eleitores da direita
radical se recusariam a responder às pesquisas, dificultando a análise, tendo
ocorrido inclusive casos de agressão contra os entrevistadores.
Além disso, defendeu-se que os números das
pesquisas estavam corretos quando foram colhidos.
A "fotografia"
estaria certa, mas, por ser estática, não conseguiria detectar o movimento de voto útil que
teria ocorrido nas horas seguintes, levando a mudanças enormes de preferências
eleitorais.
Todas essas justificativas fazem sentido. Todavia,
nenhuma delas é suficiente ou satisfatória para explicar a complexidade da
esfera pública brasileira.
É como se houvesse, literalmente, um Brasil
paralelo. Nele, os parâmetros estatísticos e as metodologias científicas
tradicionais de pesquisa não funcionam mais.
A questão é perguntar: por quê?
É A
IDEOLOGIA, ESTÚPIDO
Uma das principais razões é a forma como a
ideologia se manifesta na sociedade em rede.
Os institutos de pesquisa,
enquanto grupos que atuam dentro de padrões científicos tradicionais, não
possuem a flexibilidade e adaptabilidade necessárias para lidar com uma
sociedade líquida, em permanente fluxo.
O fato é que esses institutos foram inseridos em
circuitos ideológicos. Para uma parte significativa do eleitorado, eles são
instituições políticas, que precisam ser combatidas, atacadas, enganadas e
dissuadidas.
Então, a tese de que o campo ideológico da direita radical
"se recusa a responder" precisa ser qualificada.
Não é bem isso o que acontece. Os institutos de
pesquisa não são páreos para os modelos de organização em rede que esse campo
ideológico sabe articular como ninguém.
Presos a métodos puramente
quantitativos, os institutos são facilmente ofuscados por um campo político
coeso, bem-organizado e articulado permanentemente em redes de comunicação
digital.
É errado achar que existem eleitores
individualizados que se recusam a responder pesquisas.
Existe, na
verdade, um grupo ideológico composto de milhões de pessoas que se
articula há anos para rejeitar os institutos de pesquisa e se blindar contra a
atuação deles.
Nesse contexto, os institutos são dignos de pena,
diante de sua capacidade diminuta de lidar com uma ação ideológica de grandes
proporções e bem-coordenada.
Tanto é assim que um dos únicos institutos capazes
de furar essa trincheira ideológica montada contra a atuação das pesquisas estatísticas por amostragem foi o
AtlasIntel.
Seu diferencial foi fazer pesquisas online, com
número de entrevistados maior e com um algoritmo dinâmico que monitora as
respostas e vai se autoajustando para corrigir deficiências na amostra.
Foge do
viés de interação social com respostas mais diretas pela internet e usa mídia
programática para chegar a segmentos representativos de toda a população.
Uma
amostra final pode ter 6.000 pessoas por essa metodologia, mais flexível e
adaptável.
Dessa forma, o AtlasIntel pulou, literalmente, a
trincheira ideológica.
Ao dispensar a figura do entrevistador e pegar o eleitor
ideologizado da direita em seu habitat natural, a própria internet, foi capaz
de obter sua opinião sem o filtro, de forma espontânea e desguarnecida da
resistência institucional e antipesquisa.
A pesquisa voluntária e randômica do AtlasIntel,
feita 100% na internet, despiu-se da roupagem tradicional dos institutos e, ao
fazer isso, livrou-se também da armadilha ideológica cuidadosamente plantada
contra os métodos tradicionais de aferição.
Aplicou também métodos da vanguarda
das ciências sociais computacionais (campo que vi nascer quando fui pesquisador
visitante na Universidade de Princeton, onde conheci alguns dos seus principais
expoentes).
Sobre essa armadilha ideológica, vale lembrar que o
embate político no mundo de hoje, feito primordialmente em rede, assemelha-se
cada vez mais aos jogos de realidade alternativa (ARGs,
na sigla em inglês).
A ação política foi "gamificada". O
tabuleiro em que se joga é a própria sociedade.
Por meio de arranjos sociais
formais e informais que acontecem em diversas plataformas na rede, a ideologia
se concretiza e se transmuta em ação coletiva coordenada.
Uma vez que corações
e mentes são conquistados para o discurso da realidade alternativa, torna-se
então muito fácil coordenar de forma centralizada a ação de grupos vultuosos de
pessoas.
O primórdio desse tipo de gamificação capaz
de manipular pesquisas aconteceu em 2009, quando um grupo coordenado pelo site 4chan conseguiu eleger a personalidade do
ano da Revista Time no voto do público.
Não só aquele grupo de usuários colocou
no primeiro lugar o fundador do 4chan, o jovem chamado Moot, então com 21, como
manipulou também os votos e a ordem dos demais nomes da lista.
Ao
ler a primeira letra do nome dos 21 primeiros colocados, formava-se então a
frase "marblecake also the game", um dos memes de internet mais
conhecidos daquela época.
Em
outras palavras, se em 2009 já era possível fazer esse tipo de articulação em
larga escala, em 2022 esse tipo de ação é o novo normal.
Isso só não foi
percebido ainda por quem está inserido em outras bolhas ideológicas dotadas de
suas próprias cegueiras.
Nos
Estados Unidos, vários institutos de pesquisa têm modificado suas metodologias,
entre outras razões, pelos fatores apontados acima.
Além da dimensão
quantitativa, passaram a utilizar também uma dimensão qualitativa para tentar
obter a fotografia das pretensões eleitorais.
Em
vez de perguntar em quem o eleitor vai votar, passaram a inquirir a respeito de
onde o eleitor mora, suas visões de mundo, orientação religiosa, formação
educacional e assim por diante.
A partir dessas informações, conseguem modelar
e qualificar os resultados obtidos por métodos quantitativos, escapando, ainda que
parcialmente, da armadilha ideológica e da gamificação antipesquisa.
Sobre
esse ponto, uma das principais conquistas ideológicas empregadas pela direita
radical é disputar o próprio campo da realidade.
O feito é espantoso. A adesão de quase metade dos brasileiros medida
pelas urnas repousa sobre um leito muito bem-construído de novas narrativas,
que possuem arcos bem-delineados e aproximam-se dos trabalhos de ficção épica.
Recontam,
por exemplo, a história do Brasil à luz de uma perspectiva ideológica
completamente distinta.
Com relação ao presente, têm a perspicácia de
incorporar as culturas digitais vivas e pujantes, como games, fóruns da
internet e subculturas da rede (aliás, cada vez mais importantes para a
formação de opinião).
E o mais importante: essas narrativas épicas não
articulam somente o passado e o presente. Articulam de forma clara também uma
ideia de futuro.
Um diagnóstico dos problemas do presente, um conjunto de
soluções para eles e uma projeção de país do futuro em caso de triunfo dessa
ideologia.
Por mais que se discorde das premissas, do
diagnóstico, das propostas e da ideia de futuro (distópica), há de se concordar
que essa articulação de uma meganarrativa tem um poder persuasivo
extraordinário.
Em um momento em que os indivíduos no Ocidente (e no Brasil)
estão cada vez mais atomizados, individualizados e isolados de estruturas
sociais, essa narrativa dá um sentido ao mundo e uma coesão social
para quem adere a ela.
Funciona, inclusive, como uma nova linguagem, com
significantes e significados próprios, que é compartilhada por seus
participantes, aumentando o senso de coesão.
Note-se que essa articulação de futuro existe no
campo da direita, mas não é clara no campo da esquerda e nem no campo que se
diz de centro.
Na esquerda brasileira, predomina mais uma ideia de nostalgia
que de futuro. No centro, há até um ensaio de futuro, mas ele não está nem
claro nem bem desenvolvido.
Por isso, vale dizer claramente: a direita radical representa a vanguarda ideológica
e comunicacional no Brasil e em boa parte do Ocidente.
O centro e a
esquerda são hoje essencialmente movimentos conservadores. Querem preservar
instituições do jeito que elas são, como os institutos de pesquisa.
Para se contrapor à direita radical, é preciso
disputar o lugar da vanguarda. Isso não acontece hoje. Apenas o passado
(nostalgia) e o presente (reações do dia à dia) estão em disputa.
No território
do futuro, a direita radical está voando solo como vanguarda, conectada a
lugares e mídias que estão tecendo o futuro.
Por essa razão, um dos maiores desafios dos
institutos de pesquisa é escapar dessa meganarrativa ideológica ou, em outras
palavras, da armadilha em que foram envolvidos.
Nessa trama, assumiram o papel de vilões a serem
combatidos. O primeiro passo para superar isso é similar ao primeiro passo para
se livrar do alcoolismo, de acordo com os preceitos usualmente aceitos:
reconhecer a derrota.
Reconhecer que os institutos de pesquisa, da forma
como se organizam hoje, não são mais capazes de lidar com uma ideologia
gamificada que consegue se articular em grande magnitude para tentar
ofuscá-los.
Precisam entender a realidade e a dimensão do comportamento
ideológico coordenado, com base em fundamentos bem articulados, direcionado
contra eles.
Em outras palavras, precisam voltar à sabedoria
milenar que precede todos os conflitos que estamos vivendo.
Uma boa lição nesse
sentido está no "Huainanzi", o livro
chinês finalizado no ano 139 a.C. À época, o jovem Wu, de apenas 15 anos,
estava prestes a se tornar imperador.
O Huainanzi era um compilado de conselhos
feitos para que ele pudesse consultar na hora de tomar decisões.
A beleza do "Huainanzi" está na ideia de
usar a figura de uma árvore como o elemento central dos seus ensinamentos.
O
tronco e as raízes são os fundamentos, que precisam ser cuidados. No caso das
pesquisas eleitorais, seu tronco são a metodologia científica e a análise de
amostras à luz da estatística.
Esses fundamentos continuam importantes, mas não
são mais suficientes.
É preciso considerar também mudanças sociais e no
ecossistema dos meios de comunicação para compreender a formação de
preferências, sobretudo ideológicas.
No momento em que vivemos, boa parte da formação de opinião tem sido feita em canais
ainda pouco compreendidos, que incluem o TikTok, o Kwai, o Telegram,
o Discord e, muito importante, os stories do WhatsApp.
Certamente, uma boa parte dos leitores deste jornal nem percebeu
que o WhatsApp possui também stories, vídeos curtos que ficam no ar por 24
horas, tal como no Instagram.
Esse recurso é raramente utilizado no Brasil pelas classes A e
B. No entanto, para a maioria da população que representa a base da pirâmide
social, é um dos meios de comunicação mais utilizados.
E, onde há comunicação,
há política. Essa ferramenta tem sido um dos pilares da campanha eleitoral,
junto com o próprio WhatsApp.
Aprender sobre essas mudanças representa adicionar galhos à árvore,
ainda no caminho "Huainanzi". Esses galhos só são úteis se conectados
ao tronco, que os precede.
De nada adianta investir nos galhos se a base em que
estão presos não é sólida, mas o tronco sem novos aprendizados também vai se
tornando cada vez mais estático e enrijecido.
Para momentos de incerteza, como os nossos, há outra lição
importante: a flexibilidade. O compêndio lembra a diferença entre a língua e os
dentes.
A língua é flexível, móvel e, por não ser rígida, não se desgasta,
renova-se permanentemente. Já os dentes são fortes, duros e fixos, desgastam-se
primeiro. Ao fim da vida, é comum perder os dentes, mas raro perder a língua.
É essa flexibilidade que raramente se vê em relação a diversas
instituições, desafiadas por um mundo em rede em permanente mudança, inclusive
ideológica.
Dentre elas, os institutos de pesquisa, que basicamente não mudaram
nem adaptaram sua forma de atuação em face de contextos novos.
Só sobreviverão no mundo atual instituições que sejam mais
parecidas com a língua que com os dentes. Nesse sentido, no mínimo, os
institutos de pesquisa deveriam sair do estado de petrificação em que se
encontram e trilhar, ao menos, dois caminhos promissores.
O primeiro deles, as ciências sociais computacionais, que hoje
consistem em um campo bem-desenvolvido e bem-delimitado.
Inúmeras pesquisas e
projetos estatísticos bem-sucedidos têm sido desenvolvidos nessa área,
inclusive no campo da saúde pública, da demografia e até combate ao uso de
drogas.
Não há razão para que não possam ser utilizados também de forma
satisfatória em pesquisas eleitorais, como o AtlasIntel bem demonstrou.
O outro caminho promissor a ser explorado é uma guinada
qualitativa, galhos a serem adicionados aos métodos quantitativos para, entre
outras coisas, dar conta de enxergar o Brasil paralelo que se oculta cada vez
mais por trás da trincheira ideológica.
Ronaldo Lemos - advogado, professor das Universidades de
Columbia em Nova York e Tsinghua (em Pequim). É fundador do ITS ( Instituto de
Tecnologia e Sociedade) Rio.