App
do governo terá desafio gigante
Quem tem identidade digital ajuda de
verdade seus cidadãos mais vulneráveis.
No
dia 27 de março o governo federal anunciou que vai lançar um aplicativo para identificar os trabalhadores informais do
país, permitindo que recebam o auxílio de R$600 aprovado pelo
Congresso.
Esses
trabalhadores não constam de nenhum cadastro governamental existente.
São os
“invisíveis-ingovernáveis” que analisei neste domingo (5) em profundidade em artigo na Ilustríssima aqui na Folha.
Já é difícil fazer política pública para quem não existe formalmente, quanto
mais transferir renda.
O
aplicativo do governo vai tentar resolver em quatro dias um problema que
resulta de um descaso de décadas (a data de lançamento prometida é nesta terça,
7).
Vou torcer muito para dar certo. Só que o problema é mais profundo. O
Brasil não tem um sistema de identidades digitais. Países como Chile, Peru,
Estônia e Índia (1,3 bilhão de habitantes) já resolveram essa questão nos
últimos anos.
Transferir renda para os mais vulneráveis nesses países vai ser
uma brisa comparado com o Brasil.
O
aplicativo do governo irá enfrentar uma série de desafios.
O primeiro é ter
capacidade técnica para suportar 15 milhões de pessoas (e potencialmente mais)
tentando se inscrever nele. A infraestrutura necessária para isso é difícil de
ser mobilizada rapidamente. A segunda questão serão as fraudes.
Gostaria muito
de saber como o governo vai se certificar de que quem está do outro lado é de
fato um trabalhador informal que realmente precisa do benefício.
A
única forma de ter certeza disso seria se o Brasil tivesse uma identidade
digital gratuita e universal, o que não é o caso.
O que existe de mais próximo
disso no país é o vergonhoso “certificado digital”, que é gerido por um órgão chamado ITI,
pertencente ao próprio governo federal.
Só
que essa estrutura cobra R$ 200 por ano para emitir um certificado digital.
O
resultado é que menos de 5 milhões de pessoas no Brasil têm sua identidade
certificada digitalmente, e são justamente os mais ricos do país, que estão
longe de precisar de qualquer auxílio emergencial.
Para
complicar, 1 em cada 3 brasileiros economicamente ativos não tem conta
bancária.
O Brasil, diferentemente de outros países em desenvolvimento como a
Índia e a China, não passou por um processo de intensa bancarização nos últimos
anos.
Em
2008 apenas 17% dos indianos tinham conta bancária. Em 2018, cerca de 80% dos
adultos na Índia tinham conta bancária. Isso aconteceu porque o país criou sua
identidade digital, chamada “Aadhaar”.
Com
ela, o país está preparado para ajudar e transferir renda para praticamente
toda a sua população.
O
problema que não está resolvido no Brasil chama-se KYC (Know Your Customer):
ter um mecanismo de saber quem está na outra ponta.
Aqui, o governo não sabe
sequer quem são boa parte dos cidadãos que mais precisam dele.
Um dos
consensos que precisa emergir da crise da Covid-19 é precisamos reformar
completamente nosso sistema de identificação e os cadastros administrativos
governamentais.
Como diz o ditado popular: quem sabe faz, quem não sabe fala.
Na situação atual, quem tem identidade digital ajuda de verdade seus cidadãos
mais vulneráveis. Quem não tem, faz aplicativo.
Ronaldo Lemos - advogado, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de
Janeiro