Juridiquês, a doença infantil do
bacharelismo
Contra a mistura do mal com atraso, um pacto pela linguagem simples.
O bacharel em direito aprende
muita coisa na faculdade. Entre elas, escrever mal, especialmente mal.
Passa a
confundir elegância com mau gosto, clareza com cafonice, termo técnico com
termo bizantino. Na sua estante importam os dicionários, enciclopédias e
almanaques.
Quando entra na profissão, o bacharel conclui esse
"regime debilitante" e se torna um "medalhão completo", na
ironia de Machado de Assis.
O estilista do juridiquês
costuma ser um inseguro linguístico. Sérgio Rodrigues, na Folha, explicou: "Por insegurança
linguística, medo de errar, é comum a gente enfeitar a prosa, trocando, por
exemplo, ter por possuir, estar por encontrar-se".
É aquele que
"enche suas redações de 'outrossim' e outros entulhos juridiquentos".
O bacharel não fala
"entrar" se pode soltar um "adentrar", não escreve
"dessa maneira" se pode esbanjar um "destarte".
Se tem à
mão um "vocábulo assaz côngruo para a exordial", por que se rebaixar
a um "termo apropriado para a petição inicial"?
Em estágio avançado,
não aceita dizer "semana passada". Vai lá e dispara um
"hebdômada pretérita".
A iniciação no juridiquês se dá pelo garimpo de palavras.
Quer multiplicar o glossário de sinônimos raros, esquisitos, bem-soantes.
Não
se deve repetir "Constituição" se há todo um leque de
opções: carta magna, lei maior, lei suprema, lei das leis. Há "Codex
Obreiro" no lugar de CLT, "Pergaminho Adjetivo" no lugar de
Código de Processo.
Na lição seguinte, o juridiquês
te faz não só usar expressões latinas convencionais, mas memorizar aquelas
sinalizadoras de sua distinção, ou falta de noção. O "data venia" já
se tornou ordinário, mas não o "tantum devolutum quantum appellatum".
Para além do latim, o
estrangeirismo soma um ar cosmopolita. Como Gilmar Mendes, que jamais se referiu à Corte
Constitucional alemã sem nos ensinar que o certo é
"Bundesverfassungsgericht".
Em licenças poéticas exaltadas, mira a
câmera para gritar "eine grosse Konfusion".
Ou ainda como Luiz Fux, que deixou de dizer
"atores" e adotou "players", abandonou o "senso
comum" para abraçar o "common place".
Há também o repertório da
adulação, formas excêntricas de tratamento. Em vez de reduzir o Supremo Tribunal Federal a esse nome insosso, chame-o
de "Augusto Sodalício", "Pretório Excelso", "Egrégio
Areópago". Dirija-se ao Tribunal de Justiça como "sédulos
desembargadores dessa perleúda corte".
O bacharel avançado vai além das
palavras exóticas. Ele se esmera na construção de estruturas sintáticas
labirínticas.
Devoto do cânone dos almanaques, tem um modo peculiar de se
relacionar com o mundo das ideias e da cultura. Mistura pílulas de Aristóteles com versos de Drummond.
Às
vezes escorrega e atribui a Drummond o verso de internet "o que importa é
que sempre é possível recomeçar", citado em discurso por Fux.
Mas o juridiquês não é só um
jeito ridículo de se expressar e um manancial para a chacota. Além do estético,
o juridiquês opera um efeito político e moral.
O ornamento se torna meio para
exercer autoridade, a carteirada estilística opera a exclusão, a exibição de
credenciais sabichonas impõe hierarquia e desigualdade. O detentor de
prerrogativas te olha de cima.
Antonio Candido ("A vida ao
rés-do-chão"), ao refletir sobre as virtudes da crônica, nota que esse
gênero literário, "na sua despretensão, humaniza; e esta humanização lhe
permite recuperar com a outra mão certa profundidade de significado".
Não
atua como "disfarce da realidade e mesmo da verdade"; sua
"perspectiva não é a dos que escrevem do alto da montanha, mas do simples
rés-do-chão".
O estilista do juridiquês é um
inimigo da crônica.
Ser entendido ou se fazer de entendido, eis a questão para
o jurista bacharelesco. Entre o entendimento e o ofuscamento, opta pelo obscuro
e esotérico.
Para combater o pacto
magistocrático do juridiquês, Luís Roberto Barroso, autor da mais límpida e
humanizadora frase judicial de todos os tempos, dita ao rés-do-chão a um colega
—"Você é uma pessoa horrível, uma mistura do mal com atraso e pitadas de
psicopatia"— acaba de anunciar o Pacto Nacional do Judiciário pela Linguagem Simples.
Iniciativas assim são mais
fundamentais do que parecem. Poderão ter efetividade se monitoradas pelo
jornalismo e pela sociedade em geral. Porque senso do ridículo não é uma
virtude magistocrática.
CONRADO HÜBNER MENDES - professor de direito constitucional da USP, é doutor em
direito e ciência política e membro do Observatório Pesquisa, Ciência e
Liberdade - SBPC