Foi bom enquanto (não) durou


Filhos são uma péssima desculpa para não se divorciar

Um dos trechos mais adoráveis do documentário de João Moreira Salles sobre Nelson Freire (2003) é a parte na qual o artista descreve o encontro com Nise Obino, professora adorada.

Ela o arrancou de um bloqueio criativo que ameaçava o futuro pianista. Freire tinha sete anos quando avistou aquela mulher “desquitada” chegar à sua casa, “escandalizando a família mineira”.

Soa estranho uma mulher desquitada ser motivo de escândalo, mas talvez nos ajude a pensar sobre o atual preconceito frente a pais e mães homossexuais, transexuais e outros.

Tivemos o desgosto de testemunhar esse fato, no grotesco episódio envolvendo o casal Glenn Greenwald e David Miranda. Serve também para reconhecermos de que lado da história estamos e estaremos.

Voltando aos “desquitados” e divorciados, foi-se o tempo em que se acreditava que filhos de pais separados seriam crianças-problema.

Se o “bem da criança” fosse garantido pelo fato de os pais —cis e heterossexuais— permanecerem juntos a qualquer preço, os consultórios de psicanálise estariam vazios.


Costuma-se usar a preocupação com o sofrimento da criança para justificar a covardia frente à decisão dolorosa e dispendiosa pelo divórcio.

Não é raro o adulto, que se acredita responsável pela vida miserável que os pais tiveram, dizer equivocadamente “meus pais não se separaram por minha causa” ou, ainda, “se separaram por minha causa”.

Trata-se de frases excruciantes e de um autoelogio mal disfarçado, afinal, seríamos a razão última das motivações parentais. Nessas simples frases, eliminamos magicamente a relação entre papai e mamãe para além de nós mesmos.

Lembro do caso da jovem interessadíssima na vida amorosa do pai, que não descansou até descobrir provas de que ele tinha uma amante. Ultrajada, correu para contar para a mãe. O que ela não sabia era que a “amante” era de ambos. Boa oportunidade para sair da cena edípica, ainda que tardiamente.

Enquanto filhos, buscamos respostas sobre o desejo de pais e mães, na esperança de saber quem somos, o que é o amor, a parentalidade, a vida e a morte.

Não há pai ou mãe que possa responder isso, embora possam contar algumas histórias de encontros e desencontros que culminaram na vinda do filho. Tampouco os pais receberam essas respostas dos próprios pais.

Divórcios são penosos porque os laços que serão rompidos estão para além da pessoa de quem nos separamos: perdemos amigos em comum, parentes do lado de lá, patrimônio, hábitos.

São processos que criam estresse e considerável trabalho psíquico para todos os familiares, em especial para as crianças.

No entanto, casamentos de fachada e infelizes que se perpetuam enigmaticamente passam uma mensagem de fracasso e desesperança que os filhos não têm como elaborar. Não é apenas o tamanho do sofrimento que os oprime, mas a enigmática opção por mantê-lo.

Vale lembrar que falar mal de pai/mãe é falar mal da própria criança e de si mesmo. Da criança, porque ela sempre será filho(a) do desprezado(a) e, de si mesmo, porque foi você que teve filhos com um traste —“double fault”.

Quando a criança percebe que não foi poupada da virulência parental, o maledicente cai em desgraça também. Abster-se de incluir os filhos nas intimidades do casal é dos maiores gestos de amor que os pais podem oferecer.

Amem, odeiem, traiam, gozem, sofram, mas não ponham na conta dos filhos. Eles têm suas próprias encrencas amorosas para resolver.

Vera Iaconelli - diretora do Instituto Gerar, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Como Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

Fonte: coluna jornal FSP

Tel: 11 5044-4774/11 5531-2118 | suporte@suporteconsult.com.br