No Brasil, é comum ouvir bizarrices como “O Prof. Fulano reclama
de dar aulas demais, mas o cargo dele é de professor, né?”. Ou seja, há muita
confusão sobre quais seriam as reais atribuições de um professor
universitário. Como esse é o cargo mais importante na carreira acadêmica, vale a pena dedicar um post inteiro a esclarecer essa questão.
É claro que, na prática, o que cada professor faz no dia a dia varia muito
entre universidades. Na verdade, há uma enorme variação mesmo entre professores
de uma mesma universidade. As atribuições também vão mudando, conforme se
progride verticalmente na carreira: substituto > assistente > adjunto
> associado > titular. Aqui não vou tocar em problemas como
concursos-gincana, acomodação, estabilidade fácil, isonomia salarial, salário
defasado em relação à inflação etc., que merecem outros posts.
Vou focar no sentido maior do cargo.
Em
outros idiomas e culturas, a diferença entre um professor universitário e
outros tipos de professor fica clara já no vocabulário. Por exemplo,
no inglês, o termo professor se aplica apenas ao professor
universitário, enquanto teacher é o professor de escola electurer é o docente universitário, geralmente
com doutorado, mas sem título de professor. Sim, nos EUA, Inglaterra e outros
países, professor, mais do que um cargo, é um título. No alemão também se
diferencia o professor universitário através do termo Professor, enquanto
quem dá aulas em escolas é um Lehrer e quem
dá aulas na universidade sem ter o título de professor é um Dozent. Não é uma
questão de qual tipo de professor é melhor do que o outro, blablabla. Cada
professor tem o seu papel no sistema educacional e todos são importantes. É
apenas uma questão de diferenciar as carreiras e títulos, para se definir
claramente o que se espera de cada professor.
Então o que diferenciaria o
professor universitário dos outros? Simples: esse cargo foi inventado para ser
ocupado por profissionais que associam pesquisa e ensino. Sim, essas duas
atividades são indissociáveis no conceito original de professor universitário.
Mas, por que, Marco? Porque espera-se que um professor universitário esteja
sempre na vanguarda da sua área. Espera-se que ele atue na formação de
profissionais de nível superior, ensinando-lhes não apenas o conhecimento já
sedimentado, mas também as novidades e macetes.
Para se
formar em uma profissão de nível superior, o aluno tem que ser apresentado
tanto aos fundamentos quanto à vanguarda. Acima de tudo, espera-se que um
professor universitário produza ele mesmo algumas novidades. Sim, um professor
universitário tem a obrigação não apenas de transmitir, mas também de produzir conhecimento.
E a transmissão de conhecimento se dá principalmente em sala de aula,
passando informações consolidadas para os aspiras,
e também divulgando descobertas em revistas técnicas indexadas e revisadas por pares. Então um professor universitário tem que fazer
pesquisa também? Sim, claro! Ninguém se atualiza tanto em uma área, quanto
alguém que precisa disso para fazer as próprias pesquisas, porque ama a
ciência.
And the
plot thickens… Pelas leis brasileiras federais e estaduais, a carreia de
professor universitário envolve, em geral, cinco pilares:
§
Ensino:
coordenação e participação em disciplinas de graduação e pós-graduação,
presenciais ou à distância.
§
Pesquisa:
investigação científica ou tecnológica para produção de conhecimento. Na
verdade, a área da pesquisa envolve mais um monte de coisas além da
investigação e publicação, como revisão de artigos, editoração de revistas científicas, organização de
congressos, administração de sociedades científicas, consultoria para
agências de fomento, assessoria à imprensa, assessoria política dentro da área
em que é perito e muito mais.
§
Orientação: formação de novos cientistas através de estágios e projetos orientados
de iniciação científica, mestrado, doutorado e pós-doutorado.
§
Extensão:
assessoria e divulgação de conhecimento científico e técnico para o público
externo à universidade através de consultoria, palestras, cursos, exposições,
museus etc.
§
Administração:
cargos de chefia em geral, cargos em órgão representativos da universidade
(câmaras, conselhos, congregações), gerenciamento de projetos, captação de
verbas externas, contabilidade, direção de laboratórios, etc.
Dependendo da universidade e do
seu regimento interno, espera-se que o professor universitário envolva-se com
no mínimo dois ou três desses pilares. Os melhores professores acabam se
envolvendo com todos. O único pilar obrigatório é o ensino. Só fica
desobrigado parcial ou totalmente de dar aulas quem ocupa altos cargos
administrativos, como chefe de departamento, diretor de instituto, pró-reitor
ou reitor. Significa que, na prática, nem todo professor universitário é
obrigado a fazer pesquisa.
Vamos destrinchar um
exemplo mais concreto: as universidades federais brasileiras. De acordo
com a lei que rege essas instituições, o professor universitário “padrão”
(sem cargo de chefia ou outras condicionantes) é obrigado a dar
de 8 a 12 créditos por semestre. Cada crédito representa
mais ou menos 15 h em sala de aula. Ou seja, o sujeito é obrigado a passar
dentro de sala entre 120 e 180 h por semestre. Um professor dedicado, que
de fato gasta tempo e energia com as aulas, precisa de no mínimo 2 h de
preparação (slides, leituras, material biológico para aulas práticas,
preparação de computadores etc.) para cada 1 h em sala. Vamos considerar
que uma disciplina obrigatória de graduação tem 4 créditos (60 h) e
costuma ser organizada de forma a ocupar 4 h em sala por semana. Logo, das
40 h de trabalho semanais determinadas por lei, o professor acaba passando
pelo menos 12 h envolvido com a disciplina. Isso, fora as horas
gastas com atendimento de alunos e correção de trabalhos. Assim, a conta pode
facilmente chegar a 16 h por semana ocupadas com cada disciplina e
piora na época das provas e entrega de trabalhos, se o professor não contar com
ajudantes. Supondo uma turma com cerca de 60 alunos, imaginem a
seriedade da ralação. E, já que o mínimo são 8 créditos, o que nós,
professores, enfrentamos é isso vezes dois, pelo menos.
Para se
ocupar com 2 disciplinas de 4 créditos por semestre, totalizando 8
créditos, e realmente ministrá-las com qualidade, o professor universitário não
poderia se envolver com mais nada! A quem estamos enganando? A
única forma de aliviar essa carga é através da ajuda de pós-graduandos que
atuam como tutores e graduandos que atuam como monitores. Mas nem todo
professor ou toda disciplina contam com o apoio de auxiliares. Os tutores
remunerados conhecidos internacionalmente como “TAs” (teaching assistants),
comuns nos EUA, Alemanha, França e UK, chegaram a ter uma versão brasileira
temporária durante o Reuni. Só que o programa foi planejado para
durar apenas cinco anos. Só para variar, nada é pensado a longo prazo neste
país, tudo é paliativo, tudo é jeitinho. Como alguém pode se dedicar de
verdade à pesquisa de ponta tendo sobre os ombros o peso de uma carga
didática massacrante como essa? Como alguém pode fazer extensão e atender de
outras formas o mundo real fora da Academia, sendo obrigado a dar aulas
igual a um burro de carga? Na verdade, como seria possível conciliar qualquer
um dos outros quatro pilares da carreira com um ensino de qualidade em grande
quantidade?
O
Brasil tem um verdadeiro fetiche pela sala de aula! Em universidades de ponta,
a carga semestral obrigatória do professor não ultrapassa 4 créditos. Na
prática, os professores e alunos passam muito menos tempo em sala, justamente
porque se dá mais valor à independência dos aspiras. O bom aluno do ensino
superior gasta a maior parte do seu tempo estudando por conta própria,
sozinho ou em grupo, através de tarefas orientadas ou leitura espontânea.
O momento em sala com o professor na aula teórica (lecture ouVorlesung)
serve para apresentar ou consolidar o conteúdo principal, receber orientações,
tirar dúvidas e passar tarefas.
No
Brasil, castramos a individualidade, a criatividade, a autonomia, a iniciativa
e o livre pensamento, porque insistimos em adestrar os alunos em
cativeiro. Ok, estou divagando. Voltando ao ponto de vista do professor, dá para entender porque nunca chegaremos ao mesmo nível de qualidade em ensino e pesquisa do primeiro mundo? Ficou claro
porque estamos fadados a enxugar gelo e ficar sempre dois passos atrás dos
nossos colegas mais afortunados?
Por favor, nunca mais diga que
um professor universitário brasileiro não pode reclamar de dar aulas demais,
porque “tem cargo de professor”. Isso é tão estúpido quanto dizer que um
professor universitário que tem bolsa de produtividade está desrespeitando
a dedicação exclusiva, porque é também “pesquisador do CNPq”.
Marco
Aurelio Ribeiro de Mello - biólogo, doutor em
Ecologia, com pós-doutorado, trabalhou como pesquisador na Universität Ulm da
Alemanha; atualmente trabalha como professor na UFMG e atua como
consultor de várias revistas científicas e agências de fomento à ciência
nacionais e internacionais.