Comportamento sem cérebro
Aliás,
até sem vida, também.
Aprendi este fim de semana, ouvindo um livro sobre
comportamento animal, que parece que a psicologia ainda tem dificuldade para
concordar sobre o que é comportamento.
Adoro a ironia, pois psicologia é
exatamente o campo que estuda... comportamento.
Claro que não ter uma boa
definição do próprio campo de estudo não é exclusividade dos psicólogos: a
própria neurociência mal sabe titubear uma resposta para "o que é
consciência", aquilo que o cérebro produz.
Tenho para mim que o problema em ambos os casos é a
soberba humana, que acha que comportamento e consciência são prerrogativas da
nossa espécie, e apenas casos muito especiais são dignos de inclusão em nosso
clube.
Aí começam os estudos que buscam descobrir aquilo que "só humanos
possuem" —e que dão n’água, pois o cérebro humano é em muitos aspectos
apenas mais um cérebro vertebrado, apenas com um córtex cerebral cheio de
neurônios.
Donde a expectativa de que
"comportamento" deve ser "aquilo que o cérebro humano
produz". Eita circularidade inútil.
Em vez de definição, a autora do livro
(o nome não vem ao caso) propõe que comportamento seja definido por exclusão,
com o "teste do homem morto": se um "homem morto" ainda
pode fazer, então não era comportamento.
O pobre do homem morreu e perdeu o que
nem sabia definir...
Pois sem saber que a definição dava briga, e
precisando de uma definição operacional para poder entender o que cérebros
acrescentam ao comportamento, eu fui lá e adotei uma bem simples.
É assim:
comportamento é toda ação observável.
O guri bota o dedo no nariz? É
comportamento. O robô dança? É comportamento. A ameba come o paramécio? O
ventilador oscila de um lado para o outro? A Lua orbita a Terra? Tudo isso é
comportamento, que não precisa de cérebro, muito menos de vida —só de energia
em fluxo.
Pergunta interessante, agora sim, é o que o
cérebro, ou sistema nervoso, acrescenta ao comportamento. As ações de seres
vivos sem cérebro —bactérias, fungos, plantas— são estereotipadas e bastante
previsíveis.
Alguma mudança é sempre possível, pois toda célula é capaz de
perder a sensibilidade ao que se torna sempre presente.
Mas sem cérebro,
a memória é muito limitada, e a vida é um
tanto inflexível. O ventilador oscila pra lá e pra cá, chova ou faça sol,
enquanto estiver na tomada e seus circuitos funcionarem.
Mas com um
cérebro, o comportamento se torna flexível, capaz de encontrar associações
entre eventos e criar novas ações em vez de apenas responder bestamente aos
acontecimentos.
Com um córtex cerebral, sobretudo um cheio de neurônios e,
portanto, possibilidades, como o nosso, o comportamento ganha passado e futuro,
a capacidade de simular outras realidades, para então agir em prol daquelas
desejadas e fazer o que pode para evitar as indesejadas.
A nova realidade não precisa ser perfeita; o cérebro sabe às
vezes abrir mão do que quer para evitar o que absolutamente não quer.
O
importante é que, havendo um cérebro, podemos simular o futuro —e agir de
acordo desde já.
SUZANA HERCULANO-HOUZEL -
bióloga e neurocientista da Universidade Vanderbilt (EUA).