Às 22h30 de 17 de
setembro de 1865, apenas oito anos depois da fundação oficial do espiritismo na
França, foi realizada em Salvador a primeira sessão da doutrina no Brasil,
liderada por um jornalista, Luís Olímpio Teles de Menezes. No mesmo ano, surgiu
o primeiro centro do país. Em pouco tempo, a visão científica, filosófica e
religiosa de Allan Kardec se transformaria em uma religião tipicamente
brasileira, divulgada por intelectuais nas nossas maiores cidades. Anos antes
de ganhar as massas com Chico Xavier, os seguidores de Kardec já tinham uma
nova capital, nos trópicos.
Atualmente, o trabalho
iniciado por Kardec tem 13 milhões de seguidores no mundo. A maioria, 3,8
milhões, está no Brasil. Nossos espíritas têm os melhores indicadores
socioeducacionais dentre os fiéis de todas as religiões praticadas no país –
31,5% deles têm nível superior completo, segundo o IBGE. Entre 2000 e 2010,
eles saltaram de 1,3% da população para 2%. O sucesso nos cinemas é resultado
da boa imagem da religião: em 2010, Chico Xavier, a biografia do médium mais
famoso do século 20, alcançou 3,4 milhões de espectadores e Nosso Lar, no mesmo
ano, chegou a 4 milhões.
Mas o que explica essa
adesão massiva a uma doutrina que se equilibra entre a religião e a ciência no
maior país católico do mundo? “O Brasil tem uma tradição de religiosidade
popular muito aberta ao contato com a vida após a morte e a comunicação com
espíritos. As classes média e alta não podiam contar com as religiões de origem
africana ou indígena como expressões formais de sua fé. O kadercismo, com seu
berço francês, satisfez essa necessidade”, afirma John Monroe, historiador e
professor da Universidade de Iowa.
Mesas que rodam
Hippolyte Léon
Denizard Rivail nasceu em Lyon em 3 de outubro de 1804 e encontrou sua vocação
na Suíça. O pai, o juiz católico Jean-Baptiste-Antoine Rivail, e a mãe, a dona
de casa Jeanne Duhamel, enviaram o menino Hippolyte, de apenas 10 anos, para
estudar no Instituto de Yverdon, no castelo de Zahringenem, fundado e mantido
pelo pedagogo Johan Heinrich Pestalozzi. Na volta, instalou-se em Paris em 1820
e, quatro anos depois, começou a dar aulas. Lecionava matemática, física,
química, astronomia, anatomia e francês.
O professor convivia
com problemas financeiros recorrentes. A partir da década de 1830, passou a
reforçar a renda escrevendo gramáticas e aritméticas – e até mesmo uma peça,
chamada Uma Paixão de Salão, levada aos palcos em 1843. Também começou a usar
os conhecimentos de matemática para administrar a contabilidade de pequenas
companhias, como o teatro Les Folies Marigny, nos Champs-Élysées. Ali eram
realizados espetáculos muito em voga em meados do século 19 – com uma mistura
de magnetismo e experiências elétricas e mecânicas.
Rivail assistia a
alguns desses shows com prazer. Ele acompanhava com euforia a evolução das
ciências, que pareciam prontas para explicar definitivamente o funcionamento do
mundo, da vida e do além. Em 1834, em um de seus artigos defendendo as aulas de
ciências para crianças, ele registrou: “Aquele que houver estudado as ciências
rirá, então, da credulidade supersticiosa dos ignorantes. Não mais crerá em
espectros e fantasmas. Não mais aceitará fogos- fátuos por espíritos”.
Quando as mesas
rodantes ficaram famosas na França, na década de 1850, o pedagogo tinha uma
explicação pronta para o fenômeno. Curioso sobre os mistérios da hipnose, do
sonambulismo, do magnetismo e da eletricidade, ele dizia que os corpos reunidos
geravam uma força eletromagnética extraordinariamente forte, capaz de
movimentar objetos. Quando conheceu o fenômeno pessoalmente, em uma terça feira
de maio de 1855, percebeu que a explicação não era tão simples.
Foi na casa da senhora
Plainemaison, na Rue Grange Batelière, número 18. Ali o professor ficou
impressionado. As mensagens tinham linguagem diferente da que os médiuns usavam
no dia a dia e com um grau de conhecimento da vida privada dos visitantes que
não tinham como possuir. O pesquisador então elencou uma nova hipótese: a de
que a realidade visível não é a única que existe. E que espíritos são tão reais
quanto o mundo microscópico e as forças físicas invisíveis, como a lei da
gravidade.
Leis dos espíritos
Por serem reais,
apesar de invisíveis, os espíritos seguem leis, da mesma forma que os seres de
carne e osso. “Entrevi naquelas aparentes futilidades qualquer coisa de sério,
como que a revelação de uma nova lei, que tomei a mim investigar a fundo”, ele
relataria anos depois, para concluir que a força que movia aqueles móveis
apresentava perguntas que mereciam resposta. “Há ou não uma força inteligente?
Eis a questão. Se essa força existe, o que é? Qual será sua natureza e sua
origem? Está além da humanidade?”
Durante 20 meses, o
professor dedicou as horas vagas a entrevistar dez diferentes espíritos,
principalmente por intermédio de três garotas, Ruth Japhet, de 20 anos (que
havia enchido 50 cadernos com mensagens dos espíritos), e as irmãs Julie e
Caroline Baudin, de 14 e 16 anos. Fazia a elas perguntas como “Onde se pode
encontrar a prova da existência de Deus?” e “O que é espírito?” Na casa dos
Boudin, na Rue Rochechouart, ele se apresentava todas as terças-feiras, com
novas perguntas, ou as mesmas, para cruzar e checar as respostas. Ele não tinha
mediunidade – aliás, foi o professor quem cunhou o termo “médium” para definir
os intermediários entre os espíritos os seres humanos.
MÉTODO CIENTÍFICO
As principais explicações de Kardec para os fenômenos psíquicos e
mediúnicos
|
Fraude: O pesquisador acreditava
que os casos de truques deveriam ser sempre denunciados: “O espiritismo só
terá a ganhar com o desmascaramento
dos impostores”,escreveu. Kardec dizia que médiuns que realizam espetáculos
públicos pagos deveriam ser observados com suspeita redobrada.
|
Alucinação: O pedagogo
estabelecia critérios para diferenciar alucinações e problemas mentais em
geral de contatos legítimos com espíritos. Por exemplo: se uma pessoa escreve
mensagens em línguas que não conhece, ou se o fenômeno físico (por exemplo,
uma mesa se mexendo) foi visto por várias pessoas
|
Influência externa: Kardec reconhecia a
possibilidade da existência de dois fenômenos psíquicos: a telepatia, que ele
chamava de “reflexo do pensamento”, e a clarividência, a percepção extrassensorial
de objetos à distância. Para ele, nenhuma das duas era resultado de contatos
com o mundo espiritual.
|
Comunicação: O contato com almas
desencarnadas só pode ser considerado quando as hipóteses de fraude,
alucinação e influência de outras pessoas tiverem sido descartadas. As
mensagens do além só poderiam ser consideradas confiáveis se fossem
espontâneas e confirmadas por médiuns que não se conhecessem entre si.
|
Rivail alega que teve a oportunidade de entrevistar os espíritos do filósofo
Sócrates, do apóstolo de Jesus João Evangelista, do sacerdote Vicente de Paulo
e do cientista e político Benjamin Franklin. Um dos interlocutores mais
recorrentes era o espírito que se apresentava com o nome Zéfiro. Foi ele quem
disse ao professor que o conhecia de outras encarnações, quando Rivail era um
sacerdote druida chamado Allan Kardec e morador da Gália na época do imperador
Júlio César, entre 58 e 44 a.C. Rivail não queria assumir a autoria da coleção
de respostas – preferia se apresentar apenas como codificador e editor.
E também queria
diferenciar seu trabalho pedagógico com essa nova vertente de pesquisa. Daí
Rivail ter adotado o pseudônimo que se lê na capa da primeira edição de O Livro
dos Espíritos: “Princípios da doutrina espírita sobre a imortalidade da alma, a
natureza dos Espíritos e suas relações com os homens, as leis morais, a vida
presente, a vida futura e o porvir da Humanidade – segundo os ensinos dados por
Espíritos superiores com o concurso de diversos médiuns – recebidos e coordenados
por Allan Kardec”.
Os primeiros
exemplares do livro deixaram a Tipografia de Beau, na cidade de
Saint-Germain-en-Laye, em 18 de abril de 1857 – a data oficial do nascimento do
espiritismo, nome criado por Kardec, apresentado da seguinte maneira: “A crença
espírita, ou o espiritismo, consiste em acreditar nas relações entre o mundo
físico e os seres do mundo invisível, ou espíritos”. Rapidamente, Kardec
suplantaria Rivail em fama e reconhecimento: a primeira edição da obra
inaugural do espiritismo, vendida a 3 francos a unidade, foi esgotada em dois
meses.
Em 1º de abril de
1858, reuniu as dezenas de seguidores que havia arregimentado com a publicação
do livro e fundou a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas. Enquanto recebia
visitas de médiuns, mais ou menos sérios, cartas pedindo ajuda e textos
psicografados, novas traduções e edições eram publicadas. Na Espanha, o bispo
de Barcelona, Antônio Palau y Termens, mandou confiscar todos os exemplares de
O Livro dos Espíritos e organizou um auto de fé: as obras foram empilhadas e
queimadas em praça pública. Em 1864, a Igreja Católica inseriu a obra no Index
Librorum Prohibitorum, a lista de livros proibidos para seus fiéis.
BIBLIOTECA BÁSICA
Os cinco livros fundamentais para entender o espiritismo
|
1. O Livro dos Espíritos, 1857
Reúne as respostas de espíritos para 501 perguntas (na segunda edição, elas
seriam ampliadas para 1 019 dúvidas).
|
2. O Livro dos Médiuns, 1861
Enquanto a obra anterior era conceitual, esta é um guia prático a todas as
pessoas interessadas em desenvolver a mediunidade.
|
3. O Evangelho Segundo o Espiritismo, 1864
Como o nome indica, revê as lições dos Evangelhos da Bíblia cristã com base
nos conceitos espíritas.
|
4. O Céu e o Inferno, 1865
Explica a passagem da alma para outros planos, detalha o destino dos suicidas
e explica os parâmetros da justiça divina.
|
5. A Gênese, 1868
Aborda questões filosóficas e científicas, como a origem do Universo e os
milagres de Jesus, buscando respondê-las de acordo com os preceitos
espíritas.
|
Kardec melhorou sua situação financeira com a venda de seus livros e trocou de
casa diversas vezes. A última mudança seria para um terreno que ele havia
comprado na Avenida Ségur para construir seis pequenas casas para seu sucessor
e seguidores espíritas de poucos recursos. A residência da família ficou pronta
rapidamente, mas ele não chegou a morar lá.
Depois de publicar uma
segunda edição de O Livro dos Espíritos, bastante ampliada, e outros quatro
livros, Kardec faleceu, aos 64 anos, por volta das 11h de 31 de março de 1869,
quando um aneurisma se rompeu, um dia antes da mudança definitiva para a Avenida
Ségur. Na época, ele trabalhava numa obras sobre as relações entre o magnetismo
e o espiritismo. Os restos de Kardec estão no Cemitério Père-Lachaise. Na
lápide, ficou gravado seu novo nome, e não Rivail, e seu lema: “Nascer, morrer,
renascer ainda e progredir sem cessar. Esta é a lei.”
Místicos x cientistas
O fundador não deixou
um sucessor definido – ele previa que o espiritismo fosse conduzido por um
grupo com comandantes seguindo mandatos curtos. Sua morte acabou por lançar o
espiritismo num debate ferrenho: ciência ou religião?
Na Europa, venceram os
partidários da tese de que os estudos do professor tinham caráter científico.
Eles tinham bons motivos para isso. “Kardec foi um dos pioneiros a propor uma
investigação científica, racional e baseada em fatos observáveis, das
experiências espirituais. Desenvolveu todo um programa de investigação dessas
experiências, ao qual deu o nome de Espiritismo”, afirma Alexander
Moreira-Almeida, professor da Escola de Medicina da Universidade Federal de
Juiz de Fora (UFJF) e diretor do Núcleo de Pesquisas em Espiritualidade e Saúde
da UFJF. “A proposta mais ousada de Kardec foi a de naturalizar a dimensão
espiritual, tornando-a, assim, passível de investigação científica.
“Hoje, entre os europeus, o kardecismo é visto como pseudorreligião. Na
virada do século 20, fazia todo o sentido acreditar que os conceitos dele
seriam incorporados às pesquisas do meio acadêmico”, afirma o historiador John
Monroe, professor da Universidade de Iowa.
O Brasil viu a mesma divisão, e, num
primeiro momento, parecia que o mesmo lado seria vencedor. Um dos mais
importantes líderes do espiritismo do Brasil, o jornalista e professor italiano
Afonso Angeli Torteroli, liderava os científicos e organizou o 1º Congresso
Espírita Brasileiro, em 1881, no Rio de Janeiro. Foi lá que intelectuais
defenderam a nova linha de pensamento – pessoas respeitáveis a ponto de terem
sido recebidas pelo imperador dom Pedro II em 28 de agosto de 1881. Mas, bem de
acordo com o pensamento progressista da época, os espíritas eram, em geral,
republicanos e abolicionistas.
Mas foi o aspecto
religioso do espiritismo que venceu. E por dois motivos. Em primeiro lugar, o
lado religioso funcionava melhor para uma população ligada a um cristianismo
que, em geral, convivia tranquilamente com curandeiros, benzedeiros e
cartomantes. “A preocupação científica e filosófica não tem o mesmo appeal para
nós como tem o lado religioso-ritualístico: tomar um passe, livrando-se das
energias ruins se apresentaria como mais conveniente do que adotar uma doutrina
complexas e cheia de princípios”, afirma o professor de sociologia da
Universidade de Brasília Paulo César da Conceição Fernandes, em uma tese de
mestrado sobre as origens da religião no Brasil.
Em segundo lugar, o
mais importante líder entre os espíritas depois de Allan Kardec e antes de
Chico Xavier, o ex-deputado Adolfo Bezerra de Menezes Cavalcanti, concordava
com os místicos. Mas teve também o talento de não dispensar os
científicos. A Federação Espírita do Brasil, criada em 1884 pelo fotógrafo
português Augusto Elias da Silva, seria presidida duas vezes pelo doutor
Bezerra e estimulou a publicação de livros e textos de cunho acadêmico. “O
espiritismo oferece uma orientação para a prática da mediunidade, recomendando
que ela seja praticada quando contribuir para o bem e para a educação
espiritual do homem”, afirma Antonio Cesar Perri de Carvalho, presidente da
Federação Espírita Brasileira.
Nomes famosos da
literatura nacional aderiram rápido. Os poetas Castro Alves e Augusto dos
Anjos, de um lado, se aproximaram da nova religião. Já José de Alencar e
Machado de Assis a atacavam – mas só depois de se darem ao trabalho de
conhecê-la. Augusto dos Anjos foi o mais empolgado: em sua cidade, Engenho do Pau
D’Arco, Paraíba, ele conduzia sessões, recebia espíritos e psicografava. Quando
Chico Xavier nasceu, em 1910, o hábito de receber romances do além já era
disseminado e se tornaria uma das marcas da nova religião, que, para muitos, já
tinha muito pouco a ver com o que Kardec havia imaginado.
OITO PIONEIROS
Personagens importantes para o nascimento do espiritismo brasileiro
|
Luís Olímpio Teles de Menezes:
Jornalista, professor primário e funcionário da Biblioteca Pública da Bahia,
organizou em Salvador a primeira sessão espírita do país, em Salvador. Também
fundou o primeiro centro espírita brasileiro, o Grupo Familiar do
Espiritismo.
|
Casimir Lieutaud:
Poeta e educador francês, conheceu o espiritismo juntamente com outros
intelectuais que liam e debatiam as notícias vindas da França, incluindo o
jornalista e escritor Machado de Assis. Em 1860, publicou um livro de tom
espírita, Les Temps Sont Arrivés.
|
Antônio da Silva Neto:
Liderança espírita no Rio de Janeiro, o médico foi redator e diretor da Revista
Espírita, o segundo periódico de divulgação da religião no Brasil (o
primeiro, Écho d’Alêm-Tumulo, foi fundado em 1869, em Salvador,
por Luís Olímpio).
|
Joaquim Carlos Travassos:
Ao lado do advogado e poeta Francisco Bittencourt Sampaio, o médico e
político carioca participou da fundação, em 1873, da Sociedade de Estudos
Espiríticos – Grupo Confúcio, o primeiro centro espírita da capital, que
existiu até 1879.
|
Augusto Elias da Silva:
Nascido em Portugal e morando no Rio de Janeiro, o fotógrafo fundou a
Federação Espírita do Brasil, em 1º de janeiro de 1884. Também fundou, um ano
antes, uma publicação de divulgação da nova fé, chamada Reformador.
|
Antônio Luiz Sayão:
Advogado de São Paulo, aderiu ao espiritismo em 1878, quando sua esposa
esteve à beira da morte. Líder da Sociedade de Estudos Espíritas Deus, Cristo
e Caridade, defendeu a abolição da escravatura e publicou um livro de
referência, Estudos Evangélicos.
|
Afonso Angeli Torteroli:
O jornalista e professor italiano organizou o 1º Congresso Espírita
Brasileiro, em 1881, no Rio de Janeiro. No mesmo ano, criou o Centro da União
Espírita do Brasil, uma primeira tentativa de organizar uma federação.
Traduziu várias obras de Kardec.
|
Adolfo Bezerra de Menezes Cavalcanti:
Cearense com carreira política bem-sucedida como vereador e deputado, o
médico, militar e escritor impediu que a Federação Espírita do Brasil
entrasse em colapso, em 1895, ao assumir a presidência pela segunda vez.
|
TEXTO - Tiago Cordeiro
ILUSTRAÇÕES- Arthur Duarte
Fonte:
http://guiadoestudante.abril.com.br/aventuras-historia/allan-kardec-espiritismo-religiao-bem-brasileira-806044.shtml