Flip homenageia Millôr


Das graças de Millôr (1924-2014), uma das mais recorrentes era inventar frases sínteses para o país. “Brasil; um filme pornô com trilha de bossa nova.” “O Brasil é realmente muito amplo e luxuoso. O serviço é que é péssimo.” “Além de transformarem o Brasil num cassino, viciaram a roleta.”

As jocosas definições, somadas às charges, haicais, provérbios, versos ou textos alentados, constituíram o variado arsenal com que exercia intermitente vigilância humorada da política e da sociedade. Atuação a ser celebrada durante a 12ª edição da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), entre os dias 30 e 3. Escolhido como homenageado, o artista de obra múltipla contribui para o debate sobre o atual estado do humor e a relevância do riso como forma de refletir sobre a condição brasileira.

A soma de inteligência, coragem e nonsense, fez de Millôr nome central do gênero no país. “Millôr era nosso chairman of the board. Um escritor e artista gráfico de nível internacional. No Brasil, o melhor de todos os tempos”, afirma Luis Fernando Verissimo, indiscutível membro do board dos gênios do humor do país. “Um grande brasileiro, uma sorte do Brasil”, endossa Cássio Loredano, caricaturista de destacada trajetória na imprensa internacional. “Como os corruptos, os sem-vergonha, os cínicos sempre existiram em todos os lugares em todos os tempos, é um privilégio para um país ter alguém que possa zelar assim pela coisa pública.”

[Ele] conseguia gracejar com os generais

Do suburbano Méier, para alcançar a glória – a dos píncaros, não o bairro carioca –, bastou ao órfão de pai e mãe sair de uma infância que, até então, nada devia a Charles Dickens, como dizia. Aos 15 anos, entrava pela primeira vez numa redação. Para brilhar: no decorrer dos anos iluminaria as equipes lendárias de O Cruzeiro, Pif Paf e O Pasquim. Expôs e recebeu prêmios aqui e no exterior. A essa altura, cada vez mais se envolvia com o teatro, escrevendo, adaptando ou traduzindo peças de uma lista de gênios a dobrar a página, indo de Shakespeare a Beckett, de Molière a Ibsen, de Tchekhov a Pinter. Em curta temporada foi ator, como cenógrafo mereceu distinção, sobretudo contribuiu para criar o frescobol em Ipanema. Experimentou com a internet – do site Millôr Online, inaugurado em 2000, saíram tais informações biográficas, assinadas pelo próprio artista.

Nunca deixou de provocar a ditadura, seja na imprensa, em livros clássicos como Que País É Este?, transformado em bordão, ou em peças como Liberdade, Liberdade, apesar da censura ou das restrições que podia sofrer. Sem desperdiçar piada: “Fiquem tranquilos os poderosos que têm medo de nós: nenhum humorista atira pra matar.”

Esse humor diferia daquele praticado pelos principais artistas do país nas primeiras décadas do século passado, explica Loredano, também pesquisador do tema, autor de volumes sobre artistas gráficos como Guevara e Figueiroa, J.Carlos e Nássara. No começo eram todos mais ingênuos. Depois do trauma da Segunda Guerra, o riso se configura de outro modo, áspero e mordaz. Assim é que entra em cena aquele a quem atribui o título de “o papa” do humor brasileiro da segunda metade do século 20, o homenageado da Flip.

Neco Varella, do Valor: “Nunca se viu o nome dele [Millôr] citado entre escritores e intelectuais ‘sérios’, apesar de ter sido um grande pensador da nossa realidade e um ótimo escritor.”

Loredano diz de cátedra. Está agora à frente da investigação do acervo de Millôr doado pela família após sua morte, 7 mil itens conservados pelo Instituto Moreira Salles. Trata-se de “um mergulho absurdo em toda a sua obra, quando revê de uma só vez aquilo que acompanhava semanalmente, mesmo nos 14 anos de residência fora do país”. Em tempos de ditadura, ficava particularmente contente no exterior por ver que alguém, mesmo estando aqui, conseguia gracejar com os generais.

“O Guru do Méier”

Em Paraty, dedicadas a Millôr, haverá uma conferência de abertura do crítico de arte Agnaldo Farias, duas mesas literárias e uma exposição na Casa da Cultura. Nas livrarias de todo o país, lançamentos e reedições anunciados por quatro editoras trazem sua obra em peso de volta. Da gaúcha L&PM são 24 títulos, entre edições convencionais e de bolso, incluindo Millôr Definitivo: A Bíblia do Caos e Shakespeare Traduzido por Millôr Fernandes. Quatro seguem para as lojas pela Companhia das Letras, como The Cow Went to the Swamp - A Vaca Foi pro Brejo e Essa Cara Não Me É Estranha e Outros Poemas. Da Nova Fronteira, vão chegar três, como Guia Politicamente Correto Millôr da História do Brasil. A Cosac Naify edita uma tradução sua, A Ovelha Negra e Outras Fábulas, de Augusto Monterroso.

O humor de Millôr formou gerações que vão estar representadas na Flip. “Sou ‘millormaníaco’ desde criancinha”, admite Reinaldo Figueiredo, uma das estrelas do Casseta & Planeta. Polivalente como o mestre: iniciou sua trajetória como chargista – lança agora a antologia A Arte de Zoar – e é também músico. “Quando era garoto, via aquelas páginas dele na revista O Cruzeiro e achava uma coisa impressionante e estimulante. Aquela mistura de desenhos e textos, cada semana com uma paginação diferente, tratando de assuntos variados, nos mais diversos estilos. Aquilo dava vontade de sair desenhando e escrevendo.” Acabou por se encontrar com Millôr no Pasquim. “Lá, ele sempre me deu muita força.”

“Millormaníacos” são todos os que protagonizam a sessão de abertura, que tem esse título. Com Hubert, companheiro seu no Casseta & Planeta, Reinaldo vai entrevistar Jaguar, outro membro do board dos gênios do humor brasileiro. A mesa seguinte, no dia 1º, reúne Loredano, o jornalista de cultura Sérgio Augusto e o cartunista Claudius. Chama-se “O Guru do Méier”, um dos tantos apelidos do homenageado.

“Que há um clima pesado, não há dúvida”

Declaradamente influenciados por Millôr, também integram a programação Gregório Duvivier e Antonio Prata. O primeiro, poeta e cronista, é do Porta dos Fundos, programa de internet que tem contribuído para renovar o humor brasileiro hoje. Divide a mesa Poesia & Prosa com Eliane Brum, jornalista e documentarista, e Charles Peixoto, poeta marginal cuja obra é relançada. Prata, expoente da nova geração de cronistas, ao combinar humor e lirismo, está na mesa Livre Como um Táxi, título tomado emprestado de outro livro do homenageado, ao lado do paquistanês Mohsin Hamid.

Não é menor a quantidade de “millormaníacos” no teatro. Um dos admiradores também desde a infância, Hugo Possolo, dos Parlapatões, se lembra de quando encontrou pela primeira vez “o homem mais inteligente do Brasil”, como lhe dizia a mãe. “Na praia de Ubatuba, ele se aproximou e me fez várias perguntas sobre o frescobol que eu jogava sozinho. De volta para casa, questionei minha mãe se tinha certeza de que era mesmo tão inteligente assim, já que me parecia não entender nada. Eu tinha 12 anos”, recorda-se, entre risos. Nos Parlapatões, textos do mestre já foram usados de uma maneira ou outra, como um sobre as idiossincrasias das mulheres que serviu como base para uma improvisação em cena. Revela que ainda não tiveram coragem de encenar uma peça sua.

A ausência de Millôr – morreu em 27 de março de 2012 – coincide com um estado alterado de humor no país. Depois das manifestações de junho do ano passado, entre protestos e denúncias de violência, a polarização política parece ter se ampliado – principalmente na rede mundial de computadores –, favorecendo mais a tensão que a leveza.

“Que há um clima pesado, não há dúvida”, diz Verissimo. “É uma combinação de desencanto com o PT com um anti-petismo virulento, tudo agravado pela proximidade das eleições e o novo protagonismo da internet. Mas não acho que estamos perdendo o humor ou pelo menos a tradicional leveza brasileira de ser.”

“É melhor liberdade e quantidade do que qualquer tipo de censura”

O clima mudou, mas não para pior, pondera Prata. “Acho que perdendo o humor não estamos, mas não é um dos momentos em que se está mais livre, leve e solto por aí. E não sei se isso é necessariamente ruim”, afirma. “Num país que sempre camuflou os conflitos sob uma pátina de alegria, que sempre disse a si mesmo e ao mundo que era pacífico e não tinha racismo nem violência, às vezes é bom falar sério. E as vaias a Dilma [na abertura da Copa] são outro exemplo de que o humor continua vivo entre nós: a fatia da população que mais lucrou com ela no poder toda revoltadinha, mandando-a tomar..., não é hilário?”

De geração posterior a Verissimo e Jaguar, mas para muitos já integrado ao mesmo board, Laerte argumenta que o tal “clima pesado” é só uma das leituras que se faz. Avalia que estão todos “saindo do armário”, os da esquerda e os da direita, os a favor e os contra. “E o humor – ou o discurso cômico – vibra no mesmo vento.” Acredita que “se está produzindo mais humor em lugares desregulamentados, como a internet, dando voz a pensamentos de todo tipo: transgressores, ativistas, anárquicos, reacionários, fascistoides”. “Talvez seja essa a produção que nos leva a pensar num modo ‘pesado’ de linguagem. Talvez tenhamos em mente outro cenário: o binário do bem e do mal, do ‘nós’ e do ‘eles’ da época da ditadura, ou o do humor tradicional, de rádio, TV, botequim, um conjunto meio idealizado onde se cultivava a imagem de humor folgazão, mais travesso do que transgressor.”

Laerte prefere distinguir “humor” de “comicidade”. Este último se realiza com a obtenção do riso físico e, como observa, frequentemente reafirma ideias e noções existentes, dada a necessidade de sintonia e cumplicidade entre os participantes dessa produção cômica, o comediante e seu público. “Por vezes, há um discurso cômico que gosta de se representar coberto de ousadia anárquica, mas que faz o mesmo papel de defensor dos códigos morais do antigo bufão das cortes. Não há nada de neutro nisso.”

Tampouco Reinaldo, do grupo Casseta & Planeta, diz que há uma piora no estado do humor: “O mundo sempre foi assim: há uma grande quantidade de boçais. Só que com a facilidade da internet eles estão aparecendo mais. E essas trocas de ofensas entre os fanáticos na internet são tão ridículas! Espero que pelo menos isso sirva de assunto para boas piadas”, comenta. O computador conectado à rede, se acirra ânimos, também permite que o humor se multiplique, mesmo amador ou nem sempre inspirado. “O lado bom da internet é que todo mundo pode ser seu editor e o lado ruim é que nem todo mundo é um bom editor de si mesmo. Mas é melhor ter liberdade e quantidade do que qualquer tipo de censura ou restrição. É no meio dessa confusão que vão aparecer coisas de qualidade. O problema é a gente conseguir descobrir essas coisas boas e não perder tempo lendo besteira.”

Estrangeiros são “muito espirituosos”

O clima de polarização parece ser o maior problema. Diz Duvivier, do Porta dos Fundos: “Atrapalha a percepção da realidade. Os extremos têm a tendência de demonizar o outro lado. Esse ‘Fla-Flu’ é muito nocivo para os dois lados. O humor serve também para isso: ler a política fora dessa polarização e mostrar o ridículo do fanatismo político.” Hugo Possolo, do Parlapatões, avalia que a intolerância atinge o próprio humor. “Não tem a ver com partido, tem a ver com intolerância. Isso aponta para autoritarismo, para que o pensamento não seja plural. Mesmo que a piada não diga o que gostaria de dizer, é piada. O intolerante é mais radical que o cara que fez piada.”

Ao menos na Flip, o humor estará fortalecido. “Não sei se perdemos, talvez estejamos recobrando o humor com veia política, que é o mais interessante”, avalia o editor e tradutor Paulo Werneck, que dirige a programação do evento neste ano. “Vi muitos cartazes nas manifestações de junho que traziam humor fino e demolidor. Humoristas como o Rafucko, ativista carioca que é um excelente ator, surgiram nesse processo político. Os próprios bordões ‘padrão Fifa’ e ‘imagina na Copa’ são pura ironia, não funcionam com uma leitura literal.”

Werneck diz que conseguiu levar todos os brasileiros que trabalham com humor que quis chamar e se encaixavam no critério de não repetir autores convidados de outras edições. “A frustração ficou na conta de um italiano: o dramaturgo Dario Fo, estupendo comediógrafo, Prêmio Nobel, que não aceitou: com mais de 90 anos, não viaja mais.” Destaca, além da programação ligada ao homenageado, outros autores. “Há muito de humor, de ironia, no que o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro escreve na internet, por exemplo. Ou nos poemas do Charles Peixoto, que vai lançar sua obra completa na Flip, com o título Supertrampo.” Entre os estrangeiros, enumera Juan Villoro, Etgar Keret, Jorge Edwards, Almeida Faria, Vladímir Sorókin, Mohsin Hamid – “todos eles muito espirituosos”, ressalta.

“O engraçado também pode ser profundo”

Não apenas humor, também ficção, arquitetura, ciência, psicologia, gastronomia e pensamento indígena fazem parte da programação do evento (confira em www.flip.org.br/), cuja transmissão ao vivo no telão será pela primeira vez gratuita. Ocorrerá na praça da Santa Casa, na saída da Tenda dos Autores.

A ênfase dada ao humor num evento literário prestigioso contribui para valorizar esse gênero por vezes visto como secundário. Os círculos intelectuais nem sempre o levam tão em conta, apesar do histórico de artistas gráficos, comediantes e cronistas de altíssimo gabarito no Brasil.

“Por ser popular ou tomado como comercial, o humor enfrenta uma série de pequenos preconceitos. E são mais de dois mil anos de história no mínimo desde os gregos”, afirma Possolo, dos Parlapatões. Ou, como observa Werneck, da Flip: “Talvez, em algum momento, uma pretensa ‘seriedade’ tenha tomado conta do debate literário, como se o bom humor fosse marca de obras menores. Em alguns casos, é até pior: como se ser chato fosse sinal de inteligência.”

Sobre os humoristas não serem levados tão a sério, o board concorda. “Millôr é um bom exemplo desse descaso com o humor”, considera Verissimo. “Nunca se viu o nome dele citado entre escritores e intelectuais ‘sérios’, apesar de ter sido um grande pensador da nossa realidade e um ótimo escritor. Não foi mais considerado porque o humor não é mais considerado.”

Reinaldo, do Casseta & Planeta, pensa o mesmo sobre o próprio Verissimo. “O caso é exatamente esse. Para mim ele está entre os melhores escritores brasileiros. E se essa lista fosse só dos cinco melhores também estaria. Parece que se o sujeito escreve com humor não pode ser considerado um escritor de verdade, com E maiúsculo. Tem também o problema do veículo: se o cara publica pequenos textos num jornal diário, impresso naquele papel barato, fica parecendo uma coisa menor.” Como defende, “o engraçado também pode ser profundo”.

Loredano chama a atenção para Lula Palomanes

A respeito da desvalorização do humor em certas esferas intelectuais, Prata se recorda de um diálogo – na verdade, uma tentativa de diálogo – com o próprio Millôr. “Na primeira Flip, fiz a ele essa pergunta, no microfone da plateia”, relembra. “Ele disse que tinha avisado antes que não ia responder pergunta séria, e tinha mesmo, todo mundo riu e ele não respondeu.” Não acontece só no Brasil, mas no Brasil é pior, acrescenta. “Num país que não lê, não vai muito ao cinema, ao teatro, a exposições, a cultura acaba indo parar nas mãos de especialistas, que valorizam o que é mais difícil, mais rebuscado e, não raro, mais chato. Quantas vezes se vê, num caderno cultural de um jornal, uma matéria sobre o Verissimo, o Millôr, o Mazzaropi, o Barão de Itararé? Agora, vai ver a quantidade de coisa que sai sobre o Wittgenstein.”

Entre a nostalgia de que no tempo de Millôr era melhor e a ideia de que com a internet há renovação, para onde vai o humor brasileiro hoje? “Acho que o nosso humor melhorou”, afirma Verissimo. “Antes, com a exceção de gente como Chico Anysio e Jô Soares, nosso humor era caricato, um pouco primário, na linha do circo, do rádio antigo e do teatro de revista. Hoje, com gente como a turma do Porta dos Fundos ficou mais inteligente.”

A cultura brasileira inteira “está se transformando, não sei se renovando”, crê Laerte. “Não acho que antes fazíamos piadas melhores. Nem que refletíamos melhor através do humor.” Ele acredita que há uma “nova complexidade”, que não levou a uma produção necessariamente melhor ou pior – “tornou essa produção mais diversificada, me parece”.

Reinaldo diz que tenta “não cair nessa cilada da nostalgia”. Cita um time que inclui, além de Laerte, Allan Sieber, Adão, Arnaldo Branco, André Dahmer, Caco Galhardo. E novíssimos: no Rio, Tiago Elcerdo e os caras da revista Beleléu, e em São Paulo, Bruno Maron e a sua turma. Na internet, é outro dos que citam o Porta dos Fundos. Na TV, Marcelo Adnet. “E, é claro, também existem experiências equivocadas. O pior equívoco é fazer humor sem graça ou achar que xingamentos e constrangimentos são humor. Mas tudo bem, quem está na chuva é pra se equivocar.”

Loredano chama a atenção para um novo nome: Lula Palomanes. “É um Picasso fazendo caricatura. É uma pena, uma tragédia, que ele não publique em jornal algum.”

“Caos não falta”

Seria pelo riso o melhor método para expressar e compreender o Brasil, “país da piada pronta”, como diz o José Simão? Historiador da cultura, Elias Thomé Saliba, um dos raros intelectuais que levam o humor muito a sério, recorre ao próprio Millôr. Lembra que no Decálogo do Verdadeiro Humorista, o Guru do Méier responde: “Eu não sou um grande humorista. Sou apenas o sujeito mais engraçado da família mais engraçada da cidade mais engraçada do país mais avacalhado do mundo.”

Em Raízes do Riso, Saliba investigou as origens do humor no país, sua tese de livre-docência na Universidade de São Paulo, onde leciona. “A representação humorística brasileira nasce exatamente como forma de catarse de uma sociedade de excluídos, baseada no personalismo. Uma sociedade que tem medo da impessoalidade abstrata da lei. Uma sociedade que nasceu da Contrarreforma católica, em cima de uma civilização aventureira.” Como lembra, esses são os temas do clássico Raízes do Brasil, que serve “de inspiração oblíqua” para sua interpretação do que o autor, Sérgio Buarque de Holanda, falava a respeito do “homem cordial”, metáfora que nada tem a ver com pacifismo, mas com uma maneira de trazer tudo próximo ao coração.

“O riso – assim como as lágrimas – é uma manifestação, digamos assim, opaca, dessa ética emocional. Nós gostamos de rir. E isso diz muito sobre nós, sobre como são os brasileiros. No Brasil, por trás da diversão que o humor oferece, há também o brasileiro tentando se situar na sociedade. Cria uma identidade efêmera, sabe lidar com os poderes e faz piada. Afinal, o humor também é transgressivo. No fundo, o humor brasileiro é uma das facetas das formas como lidamos com a coisa pública.”

Estamos menos leves e mais tensos? “A violência é inerente àquela mesma ética emocional numa sociedade como a brasileira, que só muito recentemente vem convivendo com a impessoalidade abstrata da lei. Por isso, a violência e a brutalização da linguagem na internet não contrariam em nada aquela vocação humorística”, explica Saliba.

A internet tem produzido humor, embora seja algo “bastante vazio, trivial e, não raro, narcisista”, observa Saliba. “Talvez pela influência das redes sociais, o humor vem sofrendo algumas modificações na linguagem que alteram, em muitos casos para pior, o conteúdo cômico”, acrescenta. “Os programas de TV perderam muito de sua energia cômica, pois os personagens típicos, na pele de grandes intérpretes cômicos, desapareceram. O stand-up de hoje, em que pese a qualidade de muitos de seus comediantes, é residual no que se refere aos procedimentos cômicos.” Diz que são raríssimos os humoristas que conjugam o solavanco verbal da piada com os trejeitos cômicos do clown ou com bordões criativos. “É humor de rádio, meio manquitola, já que se esqueceu da pantomima do teatro e da energia do circo. É certo que tudo isso pode ser, com o tempo, corrigido e aperfeiçoado, até mesmo conhecendo e estudando melhor o extenso patrimônio humorístico brasileiro.”

De todo modo, o humor está sempre em alta, segundo o historiador: “Como a neurociência já comprovou, dois terços de toda comunicação humana baseia-se nele e nos seus diversos usos. Já no mundo acadêmico ele vai mais devagar. No caso do Brasil, mais ainda, pois o estudioso ou o analista de humor sofre daquela mesma síndrome do país da piada pronta: o humor é parte incontrastável da vida, então por que não dedicar-se a assuntos mais sérios?”

Quanto ao Brasil, de novo Millôr: “Este é o país onde há a maior possibilidade de se criar um mundo inteiramente novo. Caos não falta.”

Joselia Aguiar -  jornalista, mestre e doutoranda em história, especializada na cobertura de livros, assina a coluna Painel das Letras, publicada aos sábados na "Ilustrada"/Folha de São Paulo.

Fonte: jornal Valor Econômico

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