É impossível afirmar que o afastamento de Dilma não
levou ao descrédito institucional que hoje contamina o país
“Todos os regimes em economias
mistas (em que o Estado e o setor privado participam ativamente) dependem de
uma barganha explícita ou implícita entre os líderes políticos e os grupos que
os apoiam. As condições econômicas determinam a estabilidade e a robustez dessa
barganha. Condições auspiciosas aumentam o apoio. Crises econômicas, em
contrapartida, criam incentivos para que o setor privado abandone a barganha,
aumentam as chances de esgarçamento político e reduzem a capacidade dos
governantes de gerir conflitos redistributivos. O fracasso em prevenir uma
crise ou medidas de ajuste demasiado abruptas aumentam a probabilidade de que a
oposição seja direcionada não só ao governo, mas também às regras fundamentais
do jogo.” A citação é do livro The political economy of democratic
transitions, de Stephan Haggard e Robert R. Kaufman. A última frase é
fundamental para compreender as ramificações do impeachment de Dilma Rousseff
em 2016.
Antes de prosseguir, advirto: este
artigo não é uma defesa do governo Dilma. Em 2016, esmiucei em Como matar a
borboleta-azul: uma crônica da era Dilma como os desmandos econômicos e o
voluntarismo da ex-presidente, além dos impactos dos escândalos de corrupção,
resultaram na pior recessão que o país já enfrentou. Diversos economistas e
formadores de opinião — incluo-me nessa lista — viram na desordem econômica e
nas tentativas de esconder do povo a real situação fiscal do país motivos
suficientes para apoiar o processo de impeachment. No entanto, nem tudo o que
parece incontestável no curto prazo sob o ponto de vista estritamente econômico
tem desdobramentos benéficos sob a ótica da política. O próprio impeachment da
ex-presidente é prova disso: contrariando a letra da Constituição, Dilma
manteve seus direitos políticos mesmo tendo sido julgada por crime de responsabilidade.
Na época, cunhei o termo “impeachment de coalizão” em referência a essa
idiossincrasia.
Voltando à citação de Haggard e
Kaufman, o fracasso em prevenir a crise e a tomada de medidas abruptas e
agressivas para reduzir as distorções nos preços e nas contas públicas, além da
liberdade que desfrutava a Operação Lava Jato, foram fundamentais para que a
barganha entre o governo Dilma, a classe política e o setor privado se
esfacelasse por completo. Por mais que a responsabilidade fiscal tenha sido
descartada por Dilma como empecilho a seu viés desenvolvimentista particular,
não foi essa a razão de fundo, a economia política, do impeachment. Eis,
portanto, o problema: ainda que chamar o impeachment de Dilma de “golpe” seja
um exagero ante o peso que carrega a palavra, sobretudo na história brasileira,
não é possível atribuir a ele a mesma legitimidade que teve o impeachment — no
fim, a renúncia — de Fernando Collor. Na ausência dessa legitimidade, tampouco
é possível descartar a tese de que, desde o impeachment, o sistema político
brasileiro e parte da opinião pública têm atribuído diferentes pesos e medidas
a depender do viés ideológico de cada um. Lula foi acusado, julgado e punido
por crimes cometidos, pois não estava protegido pelo manto do foro privilegiado
— o sistema o expurgou, da mesma forma que expurgou Dilma, da mesma forma que
acabou por expurgar Eduardo Cunha. Contudo, poupou Michel Temer com as seguidas
decisões do Congresso de não investigá-lo em troca de Emendas Parlamentares e
de outros benefícios com alto custo para as contas públicas, poupou tantos e
tantos outros cujas evidências de crimes cometidos são praticamente
incontestáveis.
Nada disso passou incólume pelos
olhos do povo brasileiro.
A mais forte prova disso é o
desempenho de Lula nas mais recentes pesquisas eleitorais: se pudesse ser
candidato, estaria a pouquíssimos pontos de vencer no primeiro turno; se
pudesse ser candidato, seria eleito no segundo turno; se pudesse ser candidato,
o número de votos brancos e nulos minguaria em comparação a cenários em que não
está na disputa. Mais uma vez qualifico o que escrevo: não defendo que as leis
brasileiras sejam ignoradas para que Lula seja candidato. O que aponto aqui é
que qualquer um ou uma que venha a se eleger sem Lula na disputa estará marcado
pela ausência dele e sua legitimidade será, portanto, questionada por parte
relevante do eleitorado brasileiro.
Ao remover lentes ideológicas e
partidárias, é impossível afirmar que o impeachment de Dilma não levou ao
descrédito institucional que hoje contamina o país. Reconquistar o grau mínimo
de confiança para viabilizar a governabilidade será o mais árduo desafio do
próximo ou da próxima presidente. Sem isso não haverá reforma da Previdência
suficiente ou qualquer outra medida para recuperar a sustentabilidade econômica
brasileira. Portanto, mais do que nunca, precisamos falar sobre o impeachment.
Monica
de Bolle - diretora de estudos
latino-americanos e mercados emergentes da Johns Hopkins University.
Fonte: revista ÉPOCA