Embora a jornada de trabalho tenha sofrido, a partir de 2004, uma
significativa redução no país, muitas evidências indicam que os brasileiros
estão cada vez mais atrelados ao trabalho. A constatação faz parte da
dissertação de mestrado apresentada ao Instituto de Economia (IE) da Unicamp
pelo economista Eduardo Martins Ráo. De acordo com ele, há uma tendência em
curso no Brasil, fomentada pela classe empresarial, de criar mecanismos para
transformar tudo em hora de trabalho, até mesmo os momentos em que o
trabalhador está em casa, na companhia da sua família. “Para alguns setores
isso seria mais difícil de acontecer, dadas suas especificidades. Mas é o que o
capital, no geral, quer. Isso está colocado de maneira velada para a sociedade,
mas aparece claramente nas relações entre empresas e sindicatos”, afirma o
autor do trabalho, que foi orientado pelo professor José Dari Krein.
O estudo desenvolvido por Ráo toma para análise o
intervalo entre os anos de 1992 e 2009. Segundo ele, os microdados da Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) apontam para a ocorrência de três
padrões relacionados à dinâmica da economia e do mercado de trabalho nesse
período. O primeiro, que vai de 1992 a 1998, é representado pelo alongamento da
jornada de trabalho em todos os setores, ramos de atividade e ocupações. “Um
dado interessante é que a jornada já era extensa antes mesmo desse movimento.
Enquanto em países como Alemanha, Austrália, Bélgica e Canadá a jornada ficava
abaixo de 1.800 horas por ano, aqui ela já superava 2.000 horas. Ou seja, nos
anos 90 ela não somente anda mais estendida, como também começou se tornar mais
flexível. Trata-se, segundo a hipótese que defendo na dissertação, do
surgimento de uma nova jornada”, explica o economista.
Ráo assinala que esse
movimento ocorreu a despeito da promulgação da Constituição de 1988, que
introduziu dispositivos voltados à regulação do tempo de trabalho. “Na prática,
porém, essa regulação não ocorreu. Para driblar a legislação, as empresas passaram a utilizar o mecanismo da
hora extra, ainda que ela tenha sido onerada. Assim, os anos 90 começaram
dentro dessa realidade. Dados do Censo de 1991 revelaram, por exemplo, que
naquele ano 40% da população economicamente ativa cumpria horas excepcionais.
Em 1980, a título de comparação, esse índice era de somente 28,5%”, argumenta.
A partir de 1995, num contexto de altas taxas de desemprego, prossegue o economista, surgiram fatores que concorreram
para a manutenção da jornada alongada, tais como: o just in time,
a polivalência, os trabalhos em grupo, as metas de produção atreladas a PLR, o
banco de horas, o trabalho a tempo parcial e aos domingos e feriados, a
terceirização, a recomposição das escalas e turnos de revezamento, os sistemas
de controle de qualidade e outros mecanismos mais sofisticados de controle do
ritmo de trabalho. “Como se tratava de um momento delicado do ponto de vista da
economia e do emprego, as centrais sindicais se viram sem condições de colocar
a questão da redução da jornada na mesa de negociação com o setor empresarial.
Naquele momento, o esforço maior era pela preservação do emprego”, lembra.
O segundo padrão
registrado no período tomado para investigação por Ráo ficou circunscrito aos
anos de 1999 a 2003. Neste, a jornada de trabalho se manteve estagnada, mas num
patamar elevado. Naquele instante, 39,6% da população economicamente ativa
declarou cumprir horas excepcionais. Isso se deveu, conforme o autor da
dissertação de mestrado, a uma mudança ocorrida no mercado de trabalho,
provocada por um cenário que mesclava a forte desvalorização da moeda com o
baixo desempenho da economia. “Nessa circunstância, o emprego cresceu pouco. A
desvalorização da moeda fez com que o governo demonstrasse maior disposição em
utilizar mecanismos políticos para fazer frente ao ajuste fiscal. Entre as
medidas adotadas, estava a maior fiscalização das empresas. Uma consequência
dessa ação foi o aumento gradativo da formalização, o que fez com que a jornada
de trabalho se mantivesse dentro das normas legais para quase 1/3da população
economicamente ativa”, detalha.
O terceiro e último
padrão, registrado no intervalo de 2004 a 2009, é marcado pela já mencionada
redução da jornada de trabalho. O patamar das horas extras cumpridas pelos
trabalhadores ao longo do período caiu de 38% para 31,8%. “A jornada de
trabalho tornou-se cada vez mais padronizada, permanecendo assim dentro das
normas constitucionais [44 horas semanais]. Vale destacar que isso ocorreu de
maneira generalizada. Ou seja, alcançou todos os setores, posições e ocupações.
A interpretação que nós fizemos é que a retomada do crescimento econômico
repercutiu tanto na criação expressiva de empregos formais como também no
aumento da formalização das relações de trabalho. E a isso, soma-se ainda a
hipótese de que alguns setores da população decidiram trabalhar menos, algo que
fica mais claro quando olhamos para o trabalhador autônomo, que também reduziu
seu tempo de trabalho”.
Flexibilização
}Atentas a esse fenômeno, observa Ráo, as empresas não perderam tempo em ampliar
os mecanismos de flexibilização para manter seus empregados cada vez mais
conectados ao trabalho, ainda que a jornada tenha sido reduzida em relação ao
início dos anos 1990. “Esses mecanismos aparecem na forma de metas a serem
cumpridas ou de tarefas que são levadas para casa. Ainda insatisfeitos, os
empresários trabalham agora para que essas medidas sejam legalmente efetivadas,
envolvendo as novas formas de controlar o tempo do trabalhador. Para os
empregadores, a ideia é transformar tudo em tempo de trabalho, mesmo os
instantes em que o empregado está em casa, com a família”, adverte o
economista.
Apesar da movimentação
do setor empresarial, Ráo considera que a conjuntura atual foi favorável à
retomada da discussão, por parte da classe trabalhadora, da redução da jornada
de trabalho para 40 horas semanais, com a consequente manutenção dos salários.
“A oportunidade está aberta. Em 2003, as centrais sindicais fizeram uma
campanha nesse sentido, que chegou a ser transformada em projeto de lei, mas
que não foi votado pelo Congresso”.
O autor da dissertação
avalia, ainda, que alguns fatores contribuem para uma discussão mais
qualificada em torno da redução tanto da jornada quanto do tempo de trabalho.
Ele destaca que boa parte da população economicamente ativa está estudando
mais. Na opinião de Ráo, é possível pensar em um mecanismo que estenda o
período de formação dos jovens, que passariam a ingressar no mercado de
trabalho um pouco mais tarde, entre 25 e 27 anos. “Ao mesmo tempo, também é
possível pensar num modelo que retire as pessoas mais cedo do mercado de
trabalho, embora essa medida seja um pouco mais complicada, em razão do impacto
que causaria na Previdência Social. Entretanto, não podemos deixar de
considerar que, em 20 anos, o país terá um número elevado de idosos. O que
vamos querer: um conjunto grande de idosos pobres trabalhando ou uma população
idosa em uma posição mais confortável em termos de rendimento, que não
trabalhe?”, indaga.
Ráo reconhece que esse
pensamento trafega na contramão de um movimento em curso, cujo objetivo é
ampliar o tempo de trabalho com vistas à aposentadoria. Há propostas,
inclusive, de igualar o tempo de serviço das mulheres ao dos homens. “No
Brasil, o indivíduo tem que trabalhar até os 65 anos de idade ou contribuir por
35 anos para poder se aposentar. Num mercado de trabalho marcado pela alta
rotatividade, isso é inviável. Isso precisa ser repensado. É necessário atrelar
a questão da jornada e do tempo de trabalho à qualidade de vida. Essa discussão
tem de ser colocada, sobretudo porque inúmeras pesquisas vêm demonstrando o
crescimento das chamadas doenças ocupacionais. Ou seja, as condições e o ritmo
do trabalho têm influenciado cada vez mais na saúde do trabalhador”, argumenta.
O economista afirma que
essas preocupações estão presentes no interior dos sindicatos. Falta,
entretanto, extrapolá-las para o restante da sociedade. Ráo admite que esta
tarefa não é trivial. “Para ser concretizada, ela depende de uma ação mais
combativa dos próprios sindicatos em conjunto com os diferentes segmentos da
classe trabalhadora. Decerto, o que tem que se afastar por completo desse
movimento é a ideia de que o trabalhador brasileiro é preguiçoso e trabalha
pouco. Isso absolutamente não condiz com a realidade”, sustenta o autor da dissertação,
que contou com bolsa concedida pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal
de Nível Superior (Capes), órgão vinculado do Ministério da Educação.
Fonte: jornal da UNICAMP
Link da matéria: http://www.unicamp.br/unicamp/ju/595/estudo-mostra-que-nunca-se-trabalhou-tanto-no-pais